A narrativa inicia desde seus antecedentes em Portugal, passando pelo avô e pelo pai, ambos renomados e influentes políticos que se mantinham no poder com negociatas e artimanhas. Relata a sua paixão e casamento com a linda mulata Matilde, com quem viveu uma relação ciumenta e complicada, a decadência da família, e do poder político e do próprio Rio de Janeiro como centro de decisões, que vai ruindo aos poucos principalmente a partir de 1929.
“...meu pensamento em Matilde tinha formas vagas, era pensar num país e não numa cidade. Era pensar no tom da sua pele, tentar aplicá-lo em outras mulheres, mas com o tempo também fui esquecendo meus desejos, cansei das revistas ilustradas, perdi a noção de um corpo de mulher. Já não recebia sua mãe em sonhos, já não rolava durante o sono para acordar no lado direito da cama onde o colchão permaneceu côncavo dela. E quando nos mudamos para o subúrbio, pude dividir com você a minha cama de casal sem correr o risco de chamar por Matilde, Matilde, Matilde, ou pronunciar palavras inconvenientes durante a noite.
Mesmo vivendo em habitação de um só compartimento, num endereço de gente desclassificada, na rua mais barulhenta de uma cidade-dormitório, mesmo vivendo nas condições de um hindu sem casta, em momento algum perdi a linha. Usava pijamas sedosos com o monograma do meu pai, e não dispensava um roupão de veludo para caminhar até o alpendre no quintal, onde fazia minha higiene num banheiro com paredes chapiscadas e chão de cimento. Eram trabalhosos os meus banhos, pois à guisa de chuveiro havia um cano caprichoso, que ora pingava água a conta-gotas ora a soltava em jatos sobre a latrina.”
Leite Derramado
Chico Buarque de Holanda
Companhia das Letras
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