terça-feira, 25 de janeiro de 2011

Freud (Um trecho de “O Futuro de Uma Ilusão)

O futuro de uma Ilusão, publicado em 1927, tenta analisar porque o ser humano tem tanta necessidade de crenças religiosas. O texto quase centenário além de não perder sua atualidade, mostra-se cada vez mais vigoroso e relacionado aos dias de hoje.

… Tal como para a humanidade em seu todo, também para o indivíduo a vida é difícil de suportar. Uma cota de privações lhe é imposta pela cultura de que se faz parte; outra porção de sofrimento lhe é causada pelas demais pessoas, seja a despeito dos preceitos da  cultura, seja em consequência das imperfeições dela. A isso se acrescentam os danos que a natureza indomada – ele a chama de “destino” – lhe provoca. As consequências dessa situação teriam de ser um estado constante de angustiada expectativa e uma severa ofensa do narcisismo natural. Já sabemos como o indivíduo reage aos danos que lhe são causados pela cultura e pelos outros: desenvolve uma medida correspondente de resistência contra as instituições dessa cultura, de hostilidade a ela. Mas de que maneira ela se defende da prepotência da natureza, do destino, que o ameaça como a todos os outros?
A cultura o dispensa dessa tarefa, cuidando dela para todos de igual maneira; quanto a isso, também é notável que quase todas as culturas façam a mesma coisa. E ela não se detém na execução da sua tarefa de defender os homens da natureza, mas trata de continuá-la por outros meios. A tarefa, aí, é múltipla: o orgulho gravemente ameaçado de homem exige consolo; o mundo e a vida devem ser despojados de seus pavores; e, ao mesmo tempo, a curiosidade humana, sem dúvida impulsionada pelos mais poderosos interesses práticos, também quer uma resposta.
Já se conseguiu muito com o primeiro passo. E esse consiste em humanizar a natureza. Forças e destinos impessoais são inacessíveis, permanecem eternamente estranhos. Porém, se nos elementos se agitam paixões tal como na própria alma; se mesmo a morte não é algo espontâneo, mas o ato de violência de uma vontade maléfica; se, na natureza, o homem está cercado em toda parte por entes iguais àqueles que conhece em sua própria sociedade, então ele respira aliviado, sente-se em casa em meio a coisas inquietantes e pode elaborar psiquicamente a sua angústia sem sentido.Talvez ele ainda esteja indefeso, mas não está mais desamparadamente paralisado; pode ao menos reagir, e talvez não esteja nem mesmo indefeso, pois pode servir-se contra esses violentos super-homens de fora dos mesmos expedientes de que se serve em sua sociedade: pode tentar lhes fazer súplicas, apaziguá-los, suborná-los, roubar-lhes uma parte de seu poder através de tal influência. Essa substituição de uma ciência da natureza pela psicologia não apenas proporciona alívio imediato, mas também mostra o caminho para um domínio posterior da situação.
Pois essa situação não é nova; ela tem um modelo infantil, e é, na verdade, apenas a continuação de uma situação antiga, pois uma vez o homem já se encontrou em tal desamparo: quando criança pequena diante de seus pais, os quais tinha razão para temer - sobretudo o pai -, mas cuja proteção contra os perigosos que então conhecia também estava seguro. É natural, assim, comparar as duas situações. E, tal como na vida onírica, o desejo também não sai prejudicado. Um pressentimento de morte acomete aquele que dorme, quer levá-lo ao túmulo; o trabalho do sonho, porém, sabe escolher as condições em que mesmo esse temido acontecimento se transforma na realização de um desejo: aquele que sonha se vê num antigo túmulo etrusco, ao qual desceu, contente, para satisfazer seus interesses arqueológicos. De modo semelhante, o homem não transforma as forças da natureza simplesmente em seres humanos com os quais pode se relacionar como faz com seus iguais - algo que também não faria justiça à impressão avassaladora que tem delas –, mas lhes confere um caráter paterno, transforma-as em deuses, e nisso não apenas segue um modelo infantil, mas, segundo já tentei mostrar certa vez, um modelo filogenético.
Com o tempo, são feitas as primeiras observações de regularidades e de leis nos fenômenos naturais, e, com isso, as forças da natureza perdem seus traços humanos. Mas o desamparo dos homens permanece, e, com ele, os deuses e o anseio pelo pai…

O Futuro de Uma Ilusão
Sigmund Freud
L&pm Editores

sexta-feira, 21 de janeiro de 2011

A Camareira



                                                
                                               Acredito ter um faro ou sei lá o que,  que me
impele a encontrar livros bons entre tantos lançamentos e novidades que aportam na livraria Entrelinhas todos os dias. Quando abri a caixa da L&pm Editores, A Camareira atraiu-me como se tivesse um ímã. Não resistí. A orelha me informou que o autor, do qual nunca tinha ouvido falar, Markus Orths é um guri de 42 anos, alemão,  com dez livros publicados e traduzidos para diversas linguas, muito premiado e festejado pelo mundo afora. Comecei a leitura na livraria mesmo, numa mesinha do café. Aos poucos fui entrando no mundo de Lynn, a camareira, que ao não se sentir normal parece
Markus estar disposta a aprender a viver e para isso tenta bisbilhotar os objetos dos hóspedes do hotel em que trabalha, chegando ao ponto de ficar escondida sob a cama em certos dias. A cada página aumenta o envolvimento do leitor com uma personagem só e indefesa num mundo que não a ajuda e nem a compreende.

Um trecho do imperdível A  Camareira:

                        Quando era criança, encontrou certa vez uma concha na praia, levou a concha para a mãe que estava estendida ali em trajes de banho, branca como um queijo sob o guarda-sol, com seu livro.
                        Uma concha, disse Lynn, encontrei uma concha.
                        A mãe disse, coloque-a sobre o ouvido.
                        E Lynn colocou a concha ao ouvido.
                        O que você ouve?, perguntou a mãe.
                        Um murmúrio, disse Lynn.
                        É o murmúrio do mar, disse a mãe, as ondas que estão presas na concha.
                        O mar?, perguntou Lynn.
                        O mar, disse a mãe, e continuaou a ler.
                        Como, pensou Lynn, como é que uma concha pode prender o mar, como pode algo tão pequeno e frágil como uma concha prender algo tão grande e indestrutível como o mar, as ondas do mar, o murmúrio do mar? E então levou a concha para seu quarto e a colocou sobre o criado-mudo, e, como não conseguia dormir,  ficou segurando a concha colada ao ouvido, olhando fixamente para a escuridão e ouvindo o rumor das ondas. Pegou o copo de água e o esvaziou, e só porque pegou o copo de água e o esvaziou pôde segurar o copo de água vazio na mão, e só porque colocou de repente sobre o ouvido, e só porque colocou o copo de água sobre o ouvido ouviu o mesmo murmúrio que ouvira da concha, as mesmas ondas, o mesmo vento. E Lynn recolocou o copo no lugar e atirou a concha no cesto de papéis, porque tinha de repente pressentido que tudo na vida é um engano.


A Camareira
Markus Orths
L&pm Editores

Sem ciência, preferimos crer na mentira alheia do que em nossa própria realidade

          Aqui comigo e em algumas conversas mentais com minha gata, eu nutria uma espécie de esperança de que mais cedo ou mais tarde os e...