sábado, 26 de novembro de 2011

Solidão miserável

A 57.ª Feira do Livro de Porto Alegre está encerrada. É hora de refazer estoques, recadastrar e devolver às prateleiras os livros não vendidos. É um trabalho meticuloso e cada livro precisa ser examinado, liberto de manchas, pó e etiquetas. Da caixa tirei um exemplar da bela edição da Record de Cem Anos de Solidão (Por que será que não incluíram os desenhos do Carybé?) em vão, tentei lembrar uma ocasião em que tenha devolvido um Gabriel García Márques depois de uma feira. Não. Nunca nenhum exemplar, muito menos um Cem Anos de Solidão. Olhando a listagem dos livros que esgotaram durante a feira encontrei autoajuda, o livro de um padre cantor, vários romances de vampiros e aventuras infanto-juvenis. Não consigo evitar a melancolia ao pensar que talvez estejamos perdendo a capacidade de compreender metáforas e linguagem literária e passamos a incompreender mestres como Gabriel García Márques. Hoje precisamos histórias diretas, sem rodeiros, sem textos trabalhados. Diretos e simples como quem deixa um bilhete na geladeira para a faxineira.



Li Cem Anos de Solidão há, pelo menos, trinta anos e não foi difícil encontrar um trecho que sempre gostei muito no exemplar que tinha nas mãos:



“Estava enlaçando a cauda quando o sol saiu com tanta força que a claridade rangeu como uma canoa. O ar lavado pela chuva fina de três dias encheu-se de formigas voadoras. Então se deu conta de que tinha desejo de urinar, e que estava adiando até que acabasse de armar o peixinho. Ia para o pátio, às quatro e dez, quando ouviu os clarins distantes, os canhões do bumbo e o júbilo das crianças, e pela primeira vez desde a sua juventude pisou conscientemente numa armadilha da nostalgia e reviveu a prodigiosa tarde de ciganos em que seu pai o levou para conhecer o gelo. Santa Sofia de la Piedad abandonou o que estava fazendo na cozinha e correu até a porta.



- É o circo – gritou.



Em vez de ir até a castanheira, o coronel Aureliano Buendía também foi até a porta da rua e se misturou com os curiosos que contemplavam o desfile. Viu uma mulher vestida de couro no cangote de um elefante. Viu um dromedário triste. Viu um urso vestido de holandesa que marcava o compasso da música com uma concha e uma caçarola. Viu os palhaços dando cambalhotas na cauda do desfile, e viu outra vez a cara de sua solidão miserável quando tudo acabou de passar e não restou nada além do luminoso espaço da rua, e o ar cheio de formigas voadoras, e uns quantos curiosos na beira do precipício da incerteza. Então foi até a castanheira, pensando no circo, e enquanto urinava tratou de continuar pensando no circo, mas não achou mais a lembrança. Enfiou a cabeça entre os ombros como um franguinho, e ficou imóvel com a testa apoiada no tronco da castanheira. A família não ficou sabendo até o dia seguinte, às onze da manhã, quando Santa Sofia de la Piedad foi jogar o lixo no baldio dos fundos e reparou que os urubus estavam baixando.”



Devolvi o exemplar à prateleira. Fechei os olhos e vi a mulher vestida de couro no cangote de um elefante, o dromedário triste, o urso vestido de holandesa que marcava o compasso da música com uma concha e uma caçarola, e os palhaços dando cambalhotas na cauda do desfile. E vi a cara da nossa solidão miserável quando não mais tivermos a capacidade de compreender mestres como Gabriel García Márques.




quarta-feira, 28 de setembro de 2011

O que faltava ao peixe

O livro O Que Faltava ao Peixe (Ana Santos com Ilustrações de Aline Duda, editora Libretos, 2011) é delicioso. Histórias bem estruturadas envolvendo personagens que poderiam fazer parte da vida de qualquer um de nós, alguns extremos como crianças e velhos, outros singelos e comoventes. Pura literatura. Narrativa da boa. Escolhi a Flor e o Sono como exemplo do ótimo livro.



A Flor e o Sono

É a hora em que as criancinhas dormem, mas um vendaval desperta aquelas de ouvido apurado. Lúcia escuta a cama vizinha sem bisavó que ronque e pensa em fantasma de vestido e rugas batendo, com frio, à janela.
Na sala, o pai escreve carta em letra miúda: pois não é que a velha enfim se foi? Escapuliu dormindo, com uma flor no cabelo, invenção da Lucinha. Morreu com uma careta tão feia, mas tão feia, que a Lucinha cismou que era culpa sua, que a flor tinha um espinho...
A mãe adormeceu no sofá. No rádio, fala a voz grave de um homem, e Lúcia pensa que essa deve ser a voz do vento.
Caminha até o pai, ligeira e insone. A camisola faz dela um anjinho que flutua.
- Não consigo dormir – e contorce o rosto. – Eu tenho medo.
Ele larga a caneta. Tem uma tristeza quieta de nuvem. É só fechar bem os olhos.
- Mas aí é que eu fico com mais medo!
Ele quer saber do quê. Do escuro, do vento, da bisa. Do sono.
- Do sono, filha?
Do sono, de dormir até o infinito e de a bisa lhe pôr uma rosa no cabelo. O pai acha Lúcia boba. Diz que a bisa foi para o céu.
- E será que não cai? Será que tem asa?
Não cai, mas ele não sabe se tem asa. O céu deve ser um castelo bem grande, de tijolo azul. E flor e sono não matam ninguém, a bisa morreu foi de velha.
E se, no meio da noite, Lúcia ficasse velha de repente? O pai sorri.
- Vou te ensinar a rezar pra não ter medo – e leva Lúcia até o quarto, pela mão.
Os dois se ajoelham junto à cama. A bisa caiu, sim. Quer entrar pela janela. Escuta! O pai nunca soube reza contra o medo.
- Então diz assim, Lucinha: Pai Nosso que estais no céu...
Mas é Pai Nosso? E está no céu Mesmo?

quarta-feira, 24 de agosto de 2011

Gabriel Garcia Marques: Eu não vim fazer um discurso.


O Livro reúne discursos escritos por García Márquez durante toda a sua vida — desde os 17 anos, para se despedir de seus colegas de colégio, até o discurso do dia do seu aniversário de 80 anos. Os textos, sobre os mais variados assuntos, nos ajudam a compreender a vida do autor e revelam suas obsessões como escritor e cidadão: a fervorosa paixão pela literatura, o amor pelo jornalismo, as propostas para simplificar a gramática e as lembranças de amigos queridos como Júlio Cortázar e Álvaro Mutis.


"A ideia de que a ciência só concerne aos cientistas é 
tão anticientífica como é antipoético sugerir que a
poesia só concerne aos poetas. Neste sentido o nome 
da Unesco - Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura - arrasta pelo mundo uma grave inexatidão, dando por feito que as três coisas são diferentes quando na realidade são uma coisa só. Pois a cultura é a força totalizadora da criação: o aproveitamento social da inteligência humana. A cultura é tudo."


Palavras para o novo Milênio
Gabriel Garcia Marques
Havana, Cuba, 29 de novembro de 1985
in. Eu não vim fazer discurso -  Record 2011

domingo, 17 de julho de 2011

Cachorros de Palha

Cada parágrafo do livro Cachorros de Palha de John Gray é importante e oferece uma visão diferente do que imaginamos real no mundo em que vivemos. A grande habilidade deste professor de Pensamento Europeu na London School Of Economics, está em oferecer ao leitor a oportunidade de um novo olhar. De ver pelo outro lado. Ele explora temas filosóficos como a natureza do self, o livre-arbítrio, a moralidade, o progresso e o valor da verdade. O texto a seguir é o prefácio da 6ª edição publicada no Brasil em 2009 pela editora Record.


                        Prefácio

Cachorros de palha é um ataque às crenças impensadas de pessoas pensantes. O humanismo liberal dos dias de hoje possui o poder disseminado que antes pertencia à religião revelada. Os humanistas gostam de pensar que têm uma visão racional do mundo, mas sua crença essencial no progresso é uma superstição, mais afastada da verdade sobre o animal humano do que qualquer outra das religiões existentes.
Fora da ciência, o progresso não passa de um mito. Parece que em alguns leitores de Cachorros de Palha essa observação produziu um pânico moral. Será mesmo verdade, perguntam eles, que ninguém pode questionar o principal artigo da fé das sociedades liberais? Sem ele, não nos desesperaremos? Como trêmulos vitorianos aterrorizados diante do risco de perder a fé, esses humanistas agarram-se ao brocado roto das esperanças progressistas. Os crentes religiosos atuais são mais livres-pensadores. Levados para a margem de uma cultura na qual a ciência reivindica autoridade sobre todo o conhecimento humano, tiveram que cultivar uma capacidade de duvidar. Já os crentes seculares – firmemente subjugados pela sabedoria convencional do tempo – estão sob forte influência de dogmas não examinados.
A visão de mundo secular predominante é um pastiche da ortodoxia científica atual e de esperanças piedosas. Darwin mostrou que somos animais; mas – como os humanistas nunca se cansam de pregar – a maneira como vivemos “depende de nós”. Diferentemente de qualquer outro animal, dizem-nos, somos livres para viver como escolhemos. No entanto a idéia de livre-arbítrio não vem da ciência. Suas origens estão na religião – não numa religião qualquer, mas na fé cristã contra a qual os humanistas se batem tão obsessivamente.
No mundo antigo, os epicuristas especulavam sobre a possibilidade de que alguns eventos pudessem ser não-causados; mas a crença de que os humanos se distinguem de todos os outros animais por terem livre-arbítrio é uma herança cristã. A teoria de Darwin não teria causado tanto escândalo se tivesse sido formulada na Índia hinduísta, na China taoísta ou na África animista. Da mesma forma, é apenas nas culturas pós-cristãs que os filósofos se esforçam tão piedosamente por reconciliar o determinismo científico com uma crença na capacidade única dos humanos de escolher o modo como vivem. A ironia do darwinismo evangélico é que ele usa a ciência para apoiar uma idéia da humanidade que tem sua origem na religião.
Alguns leitores viram Cachorros de palha como uma tentativa de aplicar o darwinismo à ética e à política, mas em parte alguma o livro sugere que a ortodoxia neodarwiniana detenha a última palavra sobre o animal humano. Em vez disso, o darwinismo é estrategicamente exposto, a fim de romper a visão do mundo humanista predominante. Os humanistas buscam em Darwin um apoio para sua abalada fé moderna no progresso; mas não há progresso no mundo revelado por ele. Uma perspectiva verdadeiramente naturalista do mundo não deixa espaço algum para a esperança secular.
Entre filósofos contemporâneos, é uma questão de orgulho ser ignorante em teologia. Por consequência, as origens cristãs do humanismo secular raramente são compreendidas. No entanto eram perfeitamente claras para os seus fundadores. No início do século XIX, os positivistas franceses Henri Saint-Simon e Auguste Conte inventaram a Religião da Humanidade, uma visão de uma civilização universal baseada na ciência; o positivismo tornou-se o protótipo das religiões políticas do século XX. Através do impacto que tiveram sobre John Stuart Mill, fizeram do liberalismo o credo secular que é hoje. Através da profunda influência que exerceram sobre Karl Marx, ajudaram a moldar o “socialismo científico”. Mas ironicamente, pois Saint-Simon é Conte eram críticos ferozes do laissez-faire econômico, também inspiraram, no final do século XX, o culto do livre mercado global. Contei essa história paradoxal, e com frequentes traços de farsa, em meu livro Al-Qaeda e o significado de ser moderno.
O humanismo não é ciência, mas religião – a crença pós-cristã de que os humanos podem fazer um mundo melhor do que qualquer outro em que tenham vivido até agora. Na Europa pré-cristã assumia-se que o futuro seria igual ao passado. O conhecimento e a invenção poderiam avançar, mas a ética permaneceria basicamente a mesma. A história era uma série de ciclos, sem nenhum significado geral.
Contra essa idéia pagã, os cristãos entenderam a história como uma narrativa sobre o pecado e a redenção. O humanismo é a transformação dessa doutrina cristã da salvação em um projeto de emancipação humana universal. A idéia de progresso é uma versão secular da crença cristã na providência. É por isso que era desconhecida entre os antigos pagãos.
A crença no progresso tem outra fonte. Na ciência o crescimento do conhecimento é cumulativo. Mas a vida humana, como um todo, não é uma atividade cumulativa; o que se ganha numa geração pode ser perdido na próxima. Na ciência, o conhecimento é um bem puro; na ética e na política, tanto pode ser um bem quanto um mal. A ciência aumenta o poder humano – e amplia as imperfeições da natureza humana. Ela nos permite viver mais e ter padrões de vida mais elevados do que no passado. Ao mesmo tempo, permite-nos causar destruição – uns aos outros, e à própria Terra – numa escala jamais vista.
A idéia de progresso baseia-se na crença em que o crescimento do conhecimento e o avanço das espécies caminham juntos – se não agora, pelo menos a longo prazo. O mito bíblico da Queda do Homem contém a verdade proibida. O conhecimento não nos torna livres. Ele nos deixa como sempre fomos, vítimas de todo tipo de loucura. A mesma verdade é encontrada no mito grego. A punição de Prometeu, acorrentado a uma rocha por ter roubado o fogo dos deuses, não foi injusta.
Se a esperança no progresso é uma ilusão, como – pode-se perguntar – haveremos de viver? A pergunta parte do princípio de que os humanos podem viver bem apenas se acreditarem que têm o poder de refazer o mundo. No entanto a maior parte dos humanos que já existiram não acreditava nisso – e um grande número teve vidas felizes. A questão presume que o objetivo da vida seja a ação, mas isso é uma heresia moderna. Para Platão, a contemplação era a mais elevada forma de atividade humana. Uma idéia semelhante existia na Índia antiga. O objetivo da vida não era mudar o mundo. Era enxerga-lo corretamente.
Atualmente, essa é uma verdade subversiva, pois implica a vacuidade da política. A boa política é medíocre e improvisada, mas, no início de século XXI, o mundo está apinhado de grandiosas ruínas de utopias fracassadas. Com a esquerda moribunda, a direita tornou-se o abrigo da imaginação utópica. O comunismo global foi seguido pelo capitalismo global. As duas imagens do futuro têm muito em comum. Ambas são horrendas e, felizmente, quiméricas.
A ação política veio a ser um substituto para a salvação, mas nenhum projeto político pode salvar a humanidade de sua condição natural. Por mais radicais que sejam, os programas políticos são modestos expedientes concebidos para lidar com males recorrentes. Hegel escreve em algum lugar que a humanidade só se contentará quando estiver vivendo num mundo construído por si mesma. Ao contrário, Cachorros de palha argumenta a favor de uma mudança que se afaste do solipsismo humano. Os humanos não podem salvar o mundo, mas isso não é razão para desespero. Ele não precisa de salvação. Felizmente, os humanos nunca viverão num mundo construído por si mesmos.
                                       John Gray, maio de 2003.

domingo, 3 de julho de 2011

Borges pelo Borges




borges e eu

Ao outro, a Borges, é que sucedem as coisas. Eu caminho por Buenos Aires e me demoro, talvez já mecanicamente, para olhar o arco de um vestíbulo e o portão gradeado; de Borges tenho notícias pelo correio e vejo seu nome numa lista tríplice de professores ou num dicionário biográfico. Agradam-me os relógios de areia, os mapas, a tipografia do século XVIII, as etimologias, o gosto do café e a prosa de Stevenson; o outro compartilha essas preferências, mas de um modo vaidoso que as transforma em atributos de um ator. Seria exagerado afirmar que nossa relação é hostil; eu vivo, eu me deixo viver, para que Borges possa tramar sua literatura, e essa literatura me justifica.  Não me custa nada confessar que alcançou certas páginas válidas, mas essas páginas não podem me salvar, talvez porque o bom já não seja de ninguém, nem mesmo do outro, mas da linguagem ou da tradição. Além disso, estou destinado a perder-me, definitivamente, e só um ou outro instante de mim poderá sobreviver no outro. Pouco a pouco lhe vou cedendo tudo, embora conheça seu perverso costume de falsear e magnificar. Spinoza entendeu que todas as coisas querem perseverar em seu ser; a pedra eternamente quer ser pedra e o tigre um tigre. Eu permanecerei em Borges, não em mim (se é que sou alguém), mas me reconheço menos em seus livros do que em muitos outros, ou do que no laborioso rasqueado de uma guitarra. Há alguns anos tentei livrar-me dele e passei das mitologias do arrabalde aos jogos com o tempo e com o infinito, mas esses jogos agora são de Borges e terei de imaginar outras coisas. Assim minha vida é uma fuga e tudo eu perco e tudo é do esquecimento, ou do outro.
Não sei qual dos dois escreve esta página.

In
O Fazedor
Jorge Luis Borges
Tradução de Josely Vianna Baptista
Companhia das Letras

segunda-feira, 4 de abril de 2011

O novo livro de Lya Luft

                                                      A Riqueza do Mundo
                                                                   Um trecho do novo livro de Lya Luft 
                                                                   que está disponível na livraria.


A mãe:
Que nossa vida, meus filhos, tecida de encontros e desencontros como a de todos, tenha por baixo um rio de águas generosas, um entendimento acima das palavras e um afeto além dos gestos — algo que só pode nascer entre nós. Que quando eu me aproximo, meu filho, você não se encolha nem um milímetro com medo de voltar a ser menino, você que já é um homem. Que quando eu te olho, minha filha, você nunca se sinta criticada ou avaliada, mas simplesmente adorada como desde o primeiro instante.
Que quando se lembrarem de sua infância, não recordem os dias difíceis, (vocês nem sabiam), o trabalho cansativo, a saúde não tão boa, o casamento numa pequena ou grande crise, os nervos á flor da pele... aqueles dias em que, até hoje arrependida, dei um tapa que até agora dói em mim, ou disse uma palavra injusta. Lembrem os deliciosos momentos em família, as risadas, as histórias na hora de dormir, o bolo que abatumou mas vocês pequenos comeram dizendo que estava maravilhoso.
Que pensando em sua adolescência não recordem minhas distrações, minhas imperfeições e impropriedades, mas as caminhadas pela praia, o sorvete na esquina, a lição de casa na mesa de jantar, a sensação de aconchego sentados na sala cada um com sua ocupação.
Que quando precisarem de mim, meus filhos, vocês nunca hesitem em chamar: Mãe! Seja para prender um botão de camisa, ficar com uma criança, segurar a mão, tentar fazer baixar a febre, socorrer com qualquer tipo de recurso, ou apenas escutar alguma queixa ou preocupação. Não é preciso constranger-se de serem filhos querendo mãe, só porque vocês também já estão grisalhos, ou com filhos crescidos, com suas alegrias e dores como eu tenho e tive as minhas.
Que independendo da hora e do lugar, a gente se sinta bem pensando no outro.
Que essa consciência faça expandir-se a vida e o coração, na certeza de que aquela pessoa, seja onde for, vai saber entender; o que não entender, vai absorver; o que não absorver, vai enfeitar e tornar bom.
Que quando nos afastarmos isso seja sem dilaceramento ainda que com passageira tristeza, porque todos devem seguir seus caminhos mesmo que signifique alguma distância: e que todo reencontro seja de grandes abraços e boas risadas. Esse é um tipo de amor que independe de presença e tempo. Que quando estivermos juntos, vocês encarem com algum bom humor e muita naturalidade se houver raízes grisalhas no meu cabelo, se eu começar a repetir histórias, e se tantas vezes só de olhar para vocês meus olhos se encherem de lágrimas: serão apenas de alegria porque vocês estão aí.
Que quando pareço mais cansada, vocês não tenham receio de que agora eu precise de mais ajuda do que vocês podem me dar: provavelmente não precisarei de mais apoio do que seu carinho, sua atenção natural e jamais forçada. E se precisar de mais que isso, não s e culpem se por vezes for difícil, ou trabalhoso ou tedioso, se lhes causar susto ou dor: as coisas são assim.
Que se um dia eu começar a me confundir, esse eventual efeito de um longo tempo de vida não os assuste: tentem entrar no meu novo mundo, sem drama nem culpa mesmo quando s e impacientarem.
Toda a transformação do nascimento à morte é um dom da natureza, e uma forma de crescimento.
Que em qualquer momento, meus filhos, sendo eu qualquer mãe, de qualquer raça, credo, idade ou instrução, vocês possam perceber em mim, ainda que numa cintilação breve, a inapagável sensação de quando vocês foram colocados pela primeira vez nos meus braços: misto de susto, plenitude e ternura, maior e mais importante do que todas as glórias da arte e da ciência, mais sério do que as tentativas dos filósofos de explicarem os enigmas da existência.
A sensação que vinha do seu cheiro, de sua pele, de seu rostinho, e da consciência de que ali havia, a partir de mim e desse amor, uma nova pessoa, com seu destino e sua vida, nesta bela e complicada terra.
 E assim sendo, meus filhos, vocês sempre terão me dado muito mais do que esperei ou mereci ou imaginei vir a ter.

quarta-feira, 23 de março de 2011

Confirmado! Fabricio Carpinejar, Altair Martins e João Bosco Ayala estarão na abertura da 2.ª Semana do Livro de Guaíba

 A Literatura e os Relacionamentos De Romeu e Julieta ao Crepúsculo. 
Será o tema que nossos convidados abordarão na noite de abertura da 2ª Semana do Livro de Guaíba.
Dia 18 de abril, às 20 horas no
Museu Carlos Nobre.
 Entrada franca:

domingo, 13 de março de 2011

Se Eu Fechar os Olhos Agora



                                    Dois meninos ao nadar num lago encontram o corpo mutilado de uma mulher brutalmente assassinada. Eles vão à polícia que primeiro desconfia deles, mas liberta-os em pouco tempo, pois o marido da vítima apresenta-se e confessa o crime.
 
                                   Um dos meninos, já em casa, levanta uma suspeita: Como poderia uma mulher grande e forte como aquela, ser assassinada a facadas pelo marido que lhe pareceu tão baixinho e pequeno, frágil até?  Ingenuamente começam a investigar o crime, sem a menor noção de estarem entrando num universo de corrupção, perversidade, sexualidade doentia e exploração, em que uma menina, filha e neta de político influente e abandonada num orfanato é dada de presente para servir a propósitos doentios e perversos de parafilia.

                                    Auxiliados por um velho comunista, ex-preso político da ditadura de Getúlio Vargas, jogador de xadrez e morador de uma casa de repouso, tentam desvendar o mistério e os segredos que envolvem não apenas ricos e poderosos, mas também pessoas de todas as classes sociais da cidadezinha. Misturando romance policial, relatos juvenis e história política, aos poucos, o autor vai descortinando um universo obscuro de pessoas da sociedade local, da política e do clero, capazes de transformar uma menina  num objeto de uso de um grupo de insanos cidadãos acima de suspeitas.
 
                                 Se Eu Fechar os Olhos Agora, premiado com o Jabuti 2010, é um romance para ser lido de um fôlego só. Nos traz um retrato do Brasil dos anos 60, com homens e mulheres dispostos a tudo para manter seu status quo.  Edney Silvestre construiu uma trama ao mesmo tempo psicológica, histórica, eletrizante e comovente. Para não deixar de ler.

Se Eu Fechar os Olhos Agora
Edney Silvestre
Record

terça-feira, 25 de janeiro de 2011

Freud (Um trecho de “O Futuro de Uma Ilusão)

O futuro de uma Ilusão, publicado em 1927, tenta analisar porque o ser humano tem tanta necessidade de crenças religiosas. O texto quase centenário além de não perder sua atualidade, mostra-se cada vez mais vigoroso e relacionado aos dias de hoje.

… Tal como para a humanidade em seu todo, também para o indivíduo a vida é difícil de suportar. Uma cota de privações lhe é imposta pela cultura de que se faz parte; outra porção de sofrimento lhe é causada pelas demais pessoas, seja a despeito dos preceitos da  cultura, seja em consequência das imperfeições dela. A isso se acrescentam os danos que a natureza indomada – ele a chama de “destino” – lhe provoca. As consequências dessa situação teriam de ser um estado constante de angustiada expectativa e uma severa ofensa do narcisismo natural. Já sabemos como o indivíduo reage aos danos que lhe são causados pela cultura e pelos outros: desenvolve uma medida correspondente de resistência contra as instituições dessa cultura, de hostilidade a ela. Mas de que maneira ela se defende da prepotência da natureza, do destino, que o ameaça como a todos os outros?
A cultura o dispensa dessa tarefa, cuidando dela para todos de igual maneira; quanto a isso, também é notável que quase todas as culturas façam a mesma coisa. E ela não se detém na execução da sua tarefa de defender os homens da natureza, mas trata de continuá-la por outros meios. A tarefa, aí, é múltipla: o orgulho gravemente ameaçado de homem exige consolo; o mundo e a vida devem ser despojados de seus pavores; e, ao mesmo tempo, a curiosidade humana, sem dúvida impulsionada pelos mais poderosos interesses práticos, também quer uma resposta.
Já se conseguiu muito com o primeiro passo. E esse consiste em humanizar a natureza. Forças e destinos impessoais são inacessíveis, permanecem eternamente estranhos. Porém, se nos elementos se agitam paixões tal como na própria alma; se mesmo a morte não é algo espontâneo, mas o ato de violência de uma vontade maléfica; se, na natureza, o homem está cercado em toda parte por entes iguais àqueles que conhece em sua própria sociedade, então ele respira aliviado, sente-se em casa em meio a coisas inquietantes e pode elaborar psiquicamente a sua angústia sem sentido.Talvez ele ainda esteja indefeso, mas não está mais desamparadamente paralisado; pode ao menos reagir, e talvez não esteja nem mesmo indefeso, pois pode servir-se contra esses violentos super-homens de fora dos mesmos expedientes de que se serve em sua sociedade: pode tentar lhes fazer súplicas, apaziguá-los, suborná-los, roubar-lhes uma parte de seu poder através de tal influência. Essa substituição de uma ciência da natureza pela psicologia não apenas proporciona alívio imediato, mas também mostra o caminho para um domínio posterior da situação.
Pois essa situação não é nova; ela tem um modelo infantil, e é, na verdade, apenas a continuação de uma situação antiga, pois uma vez o homem já se encontrou em tal desamparo: quando criança pequena diante de seus pais, os quais tinha razão para temer - sobretudo o pai -, mas cuja proteção contra os perigosos que então conhecia também estava seguro. É natural, assim, comparar as duas situações. E, tal como na vida onírica, o desejo também não sai prejudicado. Um pressentimento de morte acomete aquele que dorme, quer levá-lo ao túmulo; o trabalho do sonho, porém, sabe escolher as condições em que mesmo esse temido acontecimento se transforma na realização de um desejo: aquele que sonha se vê num antigo túmulo etrusco, ao qual desceu, contente, para satisfazer seus interesses arqueológicos. De modo semelhante, o homem não transforma as forças da natureza simplesmente em seres humanos com os quais pode se relacionar como faz com seus iguais - algo que também não faria justiça à impressão avassaladora que tem delas –, mas lhes confere um caráter paterno, transforma-as em deuses, e nisso não apenas segue um modelo infantil, mas, segundo já tentei mostrar certa vez, um modelo filogenético.
Com o tempo, são feitas as primeiras observações de regularidades e de leis nos fenômenos naturais, e, com isso, as forças da natureza perdem seus traços humanos. Mas o desamparo dos homens permanece, e, com ele, os deuses e o anseio pelo pai…

O Futuro de Uma Ilusão
Sigmund Freud
L&pm Editores

sexta-feira, 21 de janeiro de 2011

A Camareira



                                                
                                               Acredito ter um faro ou sei lá o que,  que me
impele a encontrar livros bons entre tantos lançamentos e novidades que aportam na livraria Entrelinhas todos os dias. Quando abri a caixa da L&pm Editores, A Camareira atraiu-me como se tivesse um ímã. Não resistí. A orelha me informou que o autor, do qual nunca tinha ouvido falar, Markus Orths é um guri de 42 anos, alemão,  com dez livros publicados e traduzidos para diversas linguas, muito premiado e festejado pelo mundo afora. Comecei a leitura na livraria mesmo, numa mesinha do café. Aos poucos fui entrando no mundo de Lynn, a camareira, que ao não se sentir normal parece
Markus estar disposta a aprender a viver e para isso tenta bisbilhotar os objetos dos hóspedes do hotel em que trabalha, chegando ao ponto de ficar escondida sob a cama em certos dias. A cada página aumenta o envolvimento do leitor com uma personagem só e indefesa num mundo que não a ajuda e nem a compreende.

Um trecho do imperdível A  Camareira:

                        Quando era criança, encontrou certa vez uma concha na praia, levou a concha para a mãe que estava estendida ali em trajes de banho, branca como um queijo sob o guarda-sol, com seu livro.
                        Uma concha, disse Lynn, encontrei uma concha.
                        A mãe disse, coloque-a sobre o ouvido.
                        E Lynn colocou a concha ao ouvido.
                        O que você ouve?, perguntou a mãe.
                        Um murmúrio, disse Lynn.
                        É o murmúrio do mar, disse a mãe, as ondas que estão presas na concha.
                        O mar?, perguntou Lynn.
                        O mar, disse a mãe, e continuaou a ler.
                        Como, pensou Lynn, como é que uma concha pode prender o mar, como pode algo tão pequeno e frágil como uma concha prender algo tão grande e indestrutível como o mar, as ondas do mar, o murmúrio do mar? E então levou a concha para seu quarto e a colocou sobre o criado-mudo, e, como não conseguia dormir,  ficou segurando a concha colada ao ouvido, olhando fixamente para a escuridão e ouvindo o rumor das ondas. Pegou o copo de água e o esvaziou, e só porque pegou o copo de água e o esvaziou pôde segurar o copo de água vazio na mão, e só porque colocou de repente sobre o ouvido, e só porque colocou o copo de água sobre o ouvido ouviu o mesmo murmúrio que ouvira da concha, as mesmas ondas, o mesmo vento. E Lynn recolocou o copo no lugar e atirou a concha no cesto de papéis, porque tinha de repente pressentido que tudo na vida é um engano.


A Camareira
Markus Orths
L&pm Editores

Sem ciência, preferimos crer na mentira alheia do que em nossa própria realidade

          Aqui comigo e em algumas conversas mentais com minha gata, eu nutria uma espécie de esperança de que mais cedo ou mais tarde os e...