Bolo integral


                                                     Não agüentava mais. A mulher deitava no sofá reclamava da vida, do mundo, do gato, da vizinha, do chuveiro enquanto enfiava goela abaixo caixas de chocolates. O corpo dela ficava cada vez maior enquanto amplificava impropérios e flatulências nos intervalos das novelas. Da cozinha ouviu algo sobre uma lâmpada que não acendia, mas estava tão tomado de fúria que nem se deu ao trabalho de tentar entender do que se tratava. Suas mãos sobre o balcão da pia esperavam algum comando enquanto olhava para a gaveta dos talheres onde a faca de cortar carne brilhou um brilho de comercial de televisão. Duas vozes femininas gritavam ofensas a todo volume na novela e a mulher também gritava alguma coisa. Pegou a faca lentamente e quase como um robô reduziu um punhado de maçãs, primeiro a tiras como gomos e depois em cubinhos com casca e tudo até encher duas xícaras. Ouviu a mulher gritar mais alguma coisa da sala, mas o ruído da batedeira sobrepôs-se e ele foi tomado por um imenso prazer enquanto adicionava uma xícara de açúcar mascavo e um pouco de mel à xícara de farinha de trigo integral e meia de farinha de trigo branca. Quebrou três ovos erguendo-os como se fossem cálices sagrados  e juntou meia xícara de óleo de girassol , canela em pó, uma colher de chá de baunilha e meia de bicarbonato de sódio. Deixou todos os ingredientes girando no prato da batedeira, acendeu o forno e sentou calmamente enquanto untava uma forma de bolo furada no meio com margarina e farinha de trigo integral. Desligou a batedeira. O silêncio na casa se fez de pedra. Retirou o prato da batedeira, misturou delicadamente meia colher de chá de fermentoroial , despejou a massa na forma e levou ao forno. Ligou o rádio. Baden Powel  tocava O Pescador. Passou a limpar a cozinha meticulosamente. Quarenta minutos depois verificou com um palito e constatou que o bolo estava pronto.  Retirou-o do forno, desenformou e deixou esfriando na janela. Lavou a forma e deixou secando no escorredor. Pegou um prato, cortou do bolo uma fatia ainda morna, juntou uma bola de sorvete de creme e calda de chocolate. Foi para a sala onde sentou em frente a televisão desligada e saboreou seu momento.  Ao seu lado, no canto, um longo e fino fio de sangue escorria do sofá.

Sem ciência, preferimos crer na mentira alheia do que em nossa própria realidade

          Aqui comigo e em algumas conversas mentais com minha gata, eu nutria uma espécie de esperança de que mais cedo ou mais tarde os e...