quinta-feira, 29 de abril de 2010

O filho eterno

Deparei com O Filho Eterno na lista das leituras obrigatórias para o vestibular da UFRGS, e lembrei que comprei o livro faz algum tempo e ainda não tinha lido. Depois de vasculhar algumas pilhas encontrei o livro do Cristóvão Tezza, sob um A Sombra do Vento, um A Menina que Roubava Livros e de um Menino do Pijama Listrado. Uma vez encontrado o fujão, a curiosidade foi tanta que comecei a lê-lo imediatamente. E não parei mais. O livro é bom. Vi que teve gente discutindo se é romance ou autobiografia. Acho que é um romance autobiográfico. Ponto. Porque não? Ele emociona ao descrever com muita sinceridade e sem ser ridículo, a relação de um pai e seu filho com Síndrome de Down, em muitas passagens lindíssimas e bem construídas como esta:



“Ao cruzar o palácio dos milagres do Hospital das Clinicas, aquela pobreza suja, estropiada, cristã, os molambentos em fila, a desgraça imemorial em busca de esmola, aqui e ali as ambulâncias de prefeituras do interior trazendo votos potenciais que se arrastam em muletas, o gado balançando a cabeça e contemplando no balcão uma cerca incompreensível e intransponível, cuidada por outra espécie de gado que carimba papéis e entrega senhas; o sétimo céu é algum corredor que dê em outra sala onde um apóstolo de branco estenderá a mão limpa e clara sobre as cabeças para promover a cura milagrosa – ele pensa em Nietzsche e no horror da misericórdia, a humilhação como valor, a humildade como causa, a miséria como grandeza. Pois o seu filho, confirmada a tragédia, nem mesmo a esse ponto (ele olha em torno) chegará, porque não terá cérebro suficiente para inventar um deus que o ampare e não terá linguagem para pedir um favor.”


Vale a pena lê-lo. Quando terminei, senti uma estranha sensação de felicidade por um pai que conseguiu, partindo dos primeiros sentimentos egoístas com relação ao filho, amadurecer até criar uma relação agradável e corajosa com seu filho menino eterno de 25 anos. Um pai que sentiu o quanto pode doer um olhar misericordioso. A vida apresenta as mesmas dificuldades tanto para os pais como para os filhos. Aprender juntos, cada um no seu ritmo, com respeito, foi a fórmula deles. Sem apelos melodramáticos o livro nos faz pensar. Os filhos da gente com essa idade já terão todos abandonados a segurança do ninho que criamos e estarão por aí neste mundão afora voando atrás de seus sonhos, ou dos nossos? Quando temos um filho no colo, temos a sensação, de que podemos realmente protegê-lo. Dá quase uma espécie de inveja. Quando sentimos orgulho dos nossos filhos, ou vergonha como no caso do personagem/autor, ou estamos querendo orgulhar-nos ou envergonhar-nos de nos mesmos. Só ser não basta? Afinal, não temos que ter orgulho nem vergonha, filhos são o que são. Podem ser lindos, inteligentes, fortes ou não, deficientes ou como quer que escolherem ser, uns irão ao mundo outros ficarão o nosso lado, mas todos são, quem sabe, eternos? Podemos ter orgulho, isso sim, de amá-los do jeito que são ou escolheram ser. Afinal, a quem queremos enganar. O mundo é tão difícil para nós quanto para nossos filhos.


O Filho Eterno
Cristóvão Tezza
Record

quarta-feira, 14 de abril de 2010

A Elegância do Ouriço

Num edifício habitado por figurões esnobes e prepotentes de Paris, a zeladora Renée, não hesita em bater a porta no nariz de quem quer que seja, mas esconde uma personalidade dócil, educada, apaixonada por arte e literatura. Oitava filha de camponeses do Fado, todos analfabetos, na escola logo aprendeu a ler, segundo ela foi seu segundo nascimento, mas escondia de todos, pois achava que ela não tinha esse direito. Outra personagem é Paloma, filha de um ministro de estado e de uma espécie de patricinha doutorada em letras e sua irmã mais velha acha que é filosofa e todos acreditam serem muito modernos e descolados. A menina enxerga a realidade por trás das fantasias burguesas de cada um e não consegue aceitar a forma como eles vivem, e decide que se não encontrar um sentido para a vida até o dia de seu aniversário de 13 anos, vai por fogo no apartamento e se suicidar. Com a chegada de um novo morador, um rico empresário japonês aposentado, o destino das duas aproxima-se e elas acabam descobrindo caminhos novos e surpreendentes. A história é muito boa e recheada de reflexões filosóficas e pertinentes. Renée é uma quase-cinderela cuja beleza poucos tem a capacidade de enxergar. A história é um quase-conto-de-fadas que nos ajuda a refletir sobre o tênue fio que mantém a nossa existência.


... “A civilização é a violência dominada, a vitória sempre inacabada contra a agressividade do primata. Pois primatas nós fomos, e primatas permanecemos, uma camélia sobre o musgo que aprendíamos a desfrutar. Aí está toda a função da educação. Que é educar? È propor incansavelmente camélias sobre o musgo, como derivativos à pulsão da espécie, que jamais para e ameaça continuamente o frágil equilíbrio da sobrevivência. Sou muito camélia sobre o musgo. Nada mais, pensando bem, seria capaz de explicar minha reclusão neste cubículo enfadonho. Convencida desde a aurora de minha vida de sua inanidade, eu poderia ter escolhido a revolta e, tomando o céu por testemunha da iniqüidade da minha sorte, explorando as fontes de violência que abundam na nossa condição. Mas a escola fez de mim uma alma cujo destino de vacuidade não levou apenas à renúncia e à clausura. O deslumbramento de meu segundo nascimento preparou em mim o terreno do domínio pulsional; já que a escola me fizera nascer, eu lhe devia fidelidade e, portanto, me conformei com as intenções de meus educadores, tornando-me com docilidade uma criatura civilizada. Na verdade quando a luta contra a agressividade do primata se apodera dessas armas prodigiosas que são os livros e as palavras, o negócio é fácil, e foi assim que me tornei uma alma educada, que extraía dos sinais escritos a força de resistir à própria natureza.


... Para que serve a arte? Para nos dar a breve, mas fulgurante ilusão da camélia, abrindo no tempo uma brecha emocional que parece irredutível à lógica animal. Como nasce a Arte? Nasce da capacidade que tem o espírito de esculpir o campo sensorial. Que faz a arte por nós? Ela dá forma e torna visíveis nossas emoções, e, ao fazê-lo, opõe o selo de eternidade presente em todas as obras que, por uma forma particular, sabem encarnar a universalidade dos afetos humanos.


... Acho que só há uma coisa para fazer: encontrar a tarefa para a qual nascemos e realizá-la o melhor possível, com todas as nossas forças, sem complicar as coisas e sem acreditar que há um lado divino na nossa natureza animal. Só assim é que teremos a sensação de estar fazendo algo construtivo no momento em que a morte nos pegar. A liberdade, a decisão, a vontade, tudo isso são quimeras. Acreditamos que podemos fazer mel sem partilhar o destino das abelhas; mas nós também não somos mais que pobres abelhas fadadas a cumprir sua tarefa e depois morrer.


... A literatura, por exemplo, tem uma função pragmática. Como toda forma de Arte, tem a missão de tornar suportável a realização de nossos deveres vitais. Para uma criatura que, como o humano, molda seu destino na base da reflexão e da reflexividade, o conhecimento que daí decorre tem o caráter insuportável de toda lucidez nua. Sabemos que somos animais dotados de uma arma de sobrevivência, e não deuses moldando o mundo com seu pensamento próprio, e é preciso algo para que essa sagacidade se torne tolerável, algo que nos salve da triste e eterna febre dos destinos biológicos. “


Elegância do Ouriço


Muriel Barbery


Companhia das Letras.

Sem ciência, preferimos crer na mentira alheia do que em nossa própria realidade

          Aqui comigo e em algumas conversas mentais com minha gata, eu nutria uma espécie de esperança de que mais cedo ou mais tarde os e...