domingo, 10 de março de 2013

Olhar natalino


Olhar natalino do menino baleado
Publicado na Nova Folha em  21/12/2012
Mal tive tempo de abrir a porta do carro e fui abordado pelo rapaz que rapidamente serpenteou entre os veículos estacionados na Rua São José. Não consegui distinguir a idade do menino. O corpo franzino carregava cabeça de homem.  Seu olhar esforçava-se para ser de súplica, mas era frio e ameaçador. A sua mão estendida e ato contínuo, minha mão no bolso a procurar moedas. Só então percebi que seu gestopedia um cumprimento. Por instinto abandonei o bolso e a procura por moedas e voltei-me para lhe atender a saudação oferecida. Calejada e suada. Pegajosa. Asco.
A voz que não escondia a fanhosidade, provavelmente devida à falta de dentes e pela dormência provocada pelo uso de alguma droga qualquer, pedia trabalho. “Sei fazer muita coisa doutor. Sou bom de serviço. Preciso ajudar minha mãe que está doente”. Pensei em perguntar sua idade, mas desisti ao supor que talvez ele nem a saiba exatamente. Corpo de doze e rosto de trinta e seu estado maltratado lhe assegura um ar assustadoramente miserável. Um casal pediu licença para passar por nós carregando um tapete. Ouvi a voz de um pregador que orava em clamor ali perto.
A figura do rapaz na minha frente me lembrou do Lumpenproletariat, Marx, “o pior sedimento da superpopulação que vegeta no inferno da indigência e do pauperismo” e dos “Lá Bohème” franceses, “a mais completa escória que Napoleão Bonaparte reuniu para tomar o poder” (18 Brumário de Luís Napoleão).  Na rua passavam pessoas alegres carregando presentes natalinos, ventiladores, telescópios, liquidificadores, sacolas e mais sacolas.
Um casal de papais noéis brincava na rua atraindo clientes para uma loja. “Pelo menos alguma coisinha para levar para ela” ele insistiu. Sabia que a coisinha  viraria uma pedra e a abstinência da droga estava cada vez mais visível nos seus gestos irrequietos. Lembrei-me dos meus filhos e não consegui evitar a vontade de pegar o menino no colo, levar para casa e cuidar para que nunca mais nenhum mal se aproxime dele. Mas seu olhar de homem me devolveu à realidade e a intuição de que era preciso tomar uma atitude rapidamente. Lembrei-me de um dinheiro no bolso e me apressei em alcançar-lhe uma nota de dez. Seu rosto iluminou-se, agradeceu e com um “feliz natal” saiu em disparada.
Por alguns instantes fiquei imóvel observando-o se afastar até desaparecer entre a multidão de transeuntes na calçada. Uma menina e um adulto carregavam um urso enorme embrulhado com fitas coloridas. Um carro de som passou ao meu lado anunciando promoções de alegria com músicas natalinas. O casal de noéis continuava a desenvolver sua pantomima surreal enquanto eu tentava buscar por um pouco de equilíbrio na minha mente, para aplacar a imensa tristeza por constatar que a vida é assim mesmo. Todos tentam desesperadamente ser felizes. Cada com suas drogas.

domingo, 27 de janeiro de 2013

Meu voto de protesto


Publicado no Jornal Nova Folha em 21/9/2012

Em cada eleição aparecem oportunistas escondidos atrás do que gostam de chamar de voto de protesto. Em São Paulo, o palhaço Tiririca elegeu-se com o slogan “Vote no Tiririca. Pior do que está não fica”. E ficou. Elegeu-se levando com ele três deputados hoje amplamente conhecidos como corruptos, chegados a receber “algum por fora” para darem seus votos na Câmara onde estão, enfim, “picaretas” e todos estão respondendo a processos por desvio de dinheiro público.
O voto em branco é outra forma de induzir incautos que ainda não se decidiram e acham que assim vai mudar alguma coisa. Pois é justamente o voto em branco que só mantem as coisas exatamente como estão. Voto em branco quer dizer: “Estou contente. Para mim está bom assim.
Entendo que o eleitor se quiser protestar, deve fazê-lo contra si próprio, pois se algo está mal na política é porque estamos votando mal e acompanhando mal o processo democrático. A maioria de nós não lembra em quem votou na eleição passada para vereador. Ao votar, estamos escolhendo alguém para nos representar, baseados em compromissos assumidos por ele como candidato.
Nesta eleição vou protestar contra mim mesmo e mudar minha relação com o candidato que escolher. Estou guardando todo o material de propaganda e compromissos assumidos pelos meus candidatos preferenciais e, do eleito, mensalmente analisarei suas atividades. Cobrarei o cumprimento de suas propostas e compromissos assumidos até o último ponto. Aliás, acho que todos nós podemos começar acobrar de nossos candidatos ainda antes da eleição, exigindo que nos indiquem um local e um horário, à noite ou nos finais de semana, para atender, pessoalmente, aos eleitores. Além de prestar contas, o vereador poderá discutir com seus eleitores a sua atitude quanto aos projetos que tramitam na Casa Legislativa de Guaíba. Afinal, os próprios vereadores dizem que o salário que recebem não se refere aos 50 ou 60 minutos que, em média, dura uma sessão semanal da Câmara de Vereadores e sim como pagamento por todo o trabalho que fazem por seus eleitores em todos os dias da semana.
Portanto, se algum candidato ainda quiser disputar os votos de eleitores mais exigentes, ainda tempo de divulgar onde e quando fará suas reuniões de prestação de contas e avaliação de suas ações. Quem sabe estarei presente, para cobrar sua postura e colaborar com o que for possível para que o vereador tenha uma boa atuação.


sexta-feira, 18 de janeiro de 2013

Olhar de kamikaze


Publicado no jornal Nova Folha em 7/12/2012


Pelo espelho retrovisor vi que o capacete
do sujeito da motocicleta servia
de moldura a um par de olhos, algo nipônicos,
crispados de ansiedade e adrenalina.
Ao passar do meu lado entre os
automóveis, toda a sua figura mostrava
estar determinado a cometer qualquer
ato para atingir seu objetivo. Qual um
kamikaze pilotando seu avião Zero rumando
para a própria morte gloriosa
pela pátria. A cena me traz a lembrança
do livro “Corações Sujos” de Fernando
Morais.
Os pilotos da marinha imperial japonesa
davam a vida pelo direito de
morrer pelo imperador. O discurso de
Hiroito assegurava que todos os meninos
Tokotai iam livremente, felizes e orgulhosos,
morrer por ele e pela vitória do
Japão na segunda guerra.
Os novos kamikazes urbanos pilotam
motocicletas esquálidas para entregar
uma pizza em meia hora para um
sujeito gordo se lambuzar de ketchup,
enquanto zapeia pornografias na televisão
da madrugada. O discurso do dono
da pizzaria assegura que os meninos das
motocicletas, estão felizes e orgulhosos
em participar da campanha e quem não
entrega em 30 minutos não recebe os
três reais da corrida.
O sinal está fechado e o kamikaze
acelera e para, acelera e volta e corcoveia
como se fosse cavalo nervoso e irrequieto.
Nenhum veículo se move enquanto
ele continua sua coreografia. No rádio,
o homem da previsão do tempo anuncia
um dia lindo e ensolarado. O motociclista
parece estar preparando um grande
salto mortal com sua barulhenta máquina
prestes a entrar num globo da morte
em algum circo da periferia. Da calçada
surgem dois garotos esfarrapados com
narizes de palhaço fazendo malabarismo
com algumas bolas encardidas, enquanto
um terceiro pede esmolas entre
os veículos. Agora o circo está completo,
penso sentado ao volante, como se fosse
um camarote do Gran Circo Americano,
nesta manhã modorrenta de céu avermelhado
que recém está se espreguiçando
no horizonte.
O sujeito da motocicleta continua
acelerando e aumenta a agitação de seus
movimentos com a iminência, finalmente,
do sinal abrir. Os garotos se afastam
e a motocicleta empina como sinal de
força e determinação. O caminhão de
verduras da Fruteira Paraíso aproveita o
sinal que está quase fechando para ele.
Talvez o verdureiro ainda tenha tempo
de tomar café antes de abrir a quitanda.
O estrondo é surdo e abafado seguido
de um nítido e longo arrastar de pneus
e ferro no asfalto. O sinal abre e os automóveis
começam a se mover letargicamente.
Há algumas pessoas correndo,
pedindo socorro e fazendo gestos com as
mãos. Prefiro ficar olhando os garotos
com narizes de palhaço dividindo alguns
pedaços de pizza na calçada.

quinta-feira, 17 de janeiro de 2013

Cachorrada e cerveja


Publicado originalmente na Nova Folha em 06/9/12


Nossos lares, frequentemente, são invadidos
sem cerimônia, por ruídos absurdos
e enlouquecedores. Matilhas de
cães ladrando ensandecidos, nos dão a
impressão de estarmos vivendo em uma
cidade da idade média ou dentro de um
canil. Como não há nada neste mundo
que não possa ficar um pouco pior, nesta época de
campanha política, aos cães, juntam-se
candidatos que infestam nossas ruas
com sucatas motorizadas uivando reclames
infames. Piora quando os dois se
juntam. Os carros de som disparam a
ladraria dos cães. Quanto mais alto uns
fanfarram mais alto os outros ladram.
Tortura digna dos círculos do inferno
de Dante. O que, aliás, tem a sua lógica.
Cães e carros de som andam nas ruas, e
como todos nós temos pecados diferentes,
Deus deve ter inventado esta estratégia
para punir-nos simultaneamente.
Esperto. Suportar essa algazarra sonora
e manter o equilíbrio requer força de
vontade e algumas escapadas estratégicas
para paragens mais civilizadas.
Numa dessas, acabei no Lagom
Brewpub, no Bom Fim, com a recomendação
das boas cervejas da casa. Para
quem queria algo mais civilizado, disputar
um copo de cerveja, aos gritos, com
um bando de hooligans alcoolizados
está um pouco longe, mas a cerveja é boa
e compensa o sacrifício. A primeira que
experimentei foi uma Soked Porter, escura
e muito saborosa que recebi depois
de pedir uma cerveja clara de trigo a um
sujeito muito atencioso, com piercing no
nariz. Ele explicava atentamente a composição
de cada item do cardápio, mas
o pedido vinha trocado e não consegui
provar nada do que pedi. Na segunda
tentativa, voltei a pedir a clara de trigo e
recebi uma Smoked Porter, negra e com
reflexos de rubi, diz no cardápio, muito
boa e com alto teor alcóolico. Deve ser
alguma estratégia. Sei lá. O preço não é
caro e os bolinhos de bacalhau, embora
não cheguem aos tornozelos dos bolinhos
do Odeon, não são de jogar fora.
Preciso voltar lá para ver se tenho mais
sorte e consiga provar a cerveja clara de
trigo que me foi recomendada.
Uma coisa é certa. A passagem pelo
Lagom, que segundo seu material de
propaganda quer dizer equilíbrio em
alguns países de língua nórdica, permitiu-
me, momentaneamente, esquecer a
cachorrada, em todos os sentidos, que
anda solta na nossa cidade.


quarta-feira, 16 de janeiro de 2013

Os 100 anos dos Contos Gauchescos


Publicada no jornal Nova Folha em 11/5/2012


Durante a Semana do Livro deste ano,
tivemos a apresentação magnífica do Sarau
100 Anos dos Contos Gauchescos no Museu Carlos
Nobre. Quem não viu, perdeu um grande espetáculo dos
dois mestres. Altair Martins e João Bosco Ayala acompanhados
pelo músico Pacheco, contaram-nos um pouco da
história do Rio Grande, da vida de Simões Lopes Neto e de
como surgiu o livro Contos Gauchescos.
O autor publicou quatro livros: Cancioneiro Guasca
(1910), Contos Gauchescos (1912), Lendas do Sul (1913), e
Casos do Romualdo (1914). A fama surgiu apenas após a
sua morte, quando em 1949, organizada para a Editora Globo,
por Augusto Meyer, e com supervisão do editor
Henrique Bertaso e de Érico Veríssimo, foi lançada uma
edição crítica da obra Os Contos Gauchescos e Lendas do
Sul.
Durante sua vida, Simões Lopes Neto envolveu-se em
diversas iniciativas de negócios e atividades. Teve uma
fábrica de vidros, uma destilaria e até uma fábrica de cigarros
que produzia os cigarros da marca "Diabo" (é daí, exatamente,
que veio a expressão "Marca Diabo"). Apesar de
criativo e audacioso seus negócios acabavam fracassando.
Chegou a montar uma fábrica para torrar e moer café e
desenvolveu uma fórmula, à base de tabaco, para combater
sarna e carrapatos. Por fim, ainda fundou uma
mineradora para explorar prata em Santa Catarina.
Atitudes irrequietas e desbravadoras como as de Simões
Lopes Neto, são muito visíveis em toda história da humanidade.
Suas obras geniais, em muitos casos, acabam descobertas
ou tidas como geniais apenas postumamente.
Agora mesmo, podemos estar convivendo com um inovador,
um gênio, cuja obra somente será reconhecida depois
de muito tempo. Por que será que não nos damos conta
disso? Em casa, nas escolas, no trabalho, procuramos "enquadrar"
os "desajustados". Nossas mentes narcísicas
insistem em repetir o que achamos correto e gostamos do
que pensamos que somos. O diferente nos assusta. Normalmente
aceitamos melhor o que vem de fora e está pronto
do que aquilo que está se desenvolvendo aqui, ao nosso
lado. Preferimos buscar soluções que, aparentemente,
funcionam em outros lugares ao invés de ousar e desenvolver
nossas próprias alternativas. Mas a vida nos oferece
caminhos a escolher: podemos ser copiadores ou criadores.
A escolha é nossa. Ainda bem que alguns conseguem
escapar do cerco impiedoso que exercemos sobre
quem ousa ser criativo ou ter uma ideia nova.
No dia 29 de maio, estaremos com a Livraria Entrelinhas,
a Nova Folha e a revista Travessia na Feira do Livro
da Escola Martinho Lutero.
Aos pais que desejam despertar em seus filhos o hábito
da leitura, sugiro o exemplo antes do discurso. A leitura é
um mundo a desbravar. Quem sabe, um dia por semana
substituir duas horas de TV por um livro?

Sem ciência, preferimos crer na mentira alheia do que em nossa própria realidade

          Aqui comigo e em algumas conversas mentais com minha gata, eu nutria uma espécie de esperança de que mais cedo ou mais tarde os e...