Anotações do Livreiro

Lembranças do futuro?


Não sei a autoria deste texto 
que encontrei numa anotação
em folha amassada dentro de um 
livro usado.




Gosto de ver a chuva da janela. Das gotinhas formando riozinhos que escorrem apressados e se encontram de vez em quando desenhando mapas e figuras nas vidraças. Gosto do barulho que os pingos fazem batendo nas folhas da árvore ao lado da casa. Tem os que batem na calha, outros no chão. Outros pinicam no telhado ou ficam gotejando em vários lugares que não consigo identificar onde sejam. Cada um tem seu próprio ritmo e todos os sons são diferentes. Fecho os olhos e ouço a melodia que eles tocam para mim. Nenhuma chuva é igual a outra e não entendo bem o que faço ou onde fico entre uma chuva e outra. Não faz mal. Gosto tanto que não me importa não ter respostas. Meu quarto está sempre igual. Tem vezes que o dia está mais claro e outras, mais escuro, mas sempre chove. Minha mãe, tem dias que aparece, senta na cama e chora enquanto vasculha alguma coisa na minha caixa de fotografias. Queria tanto deitar no seu colo e deixar que ela brincasse nos meus cabelos com os dedos. Depois da chuva éra o que eu mais gostava. Sentir seus dedos enrolando-se nos meus cabelos. Gosto tanto de ficar olhando para ela sentada ali com as lágrimas escorrendo pelo rosto, igual aos pingos na janela, que não me importa que ela não olhe mais pra mim.










O Livreiro na Copa do Mundo                                                                                




   Nestes tempos de copa do mundo parece que tudo e todos estão definitivamente em sintonia com futebol e mais futebol. Confesso que não ando com muita paciência com o esporte bretão que tantos adeptos têm aqui no Brasil, e até concordo com o Peninha quando diz que a CBF é a última capitania hereditária ainda em atividade em nossa luso-brasileira pátria. 

Mas eis que num dia de jogo do Brasil um pequeno grupo de adolescentes entrou na livraria e um deles olhou o preço do Filho Eterno do Cristóvão Tezza e fez menção de voltar para comprar o livro. Tentando ser gentil informei-lhe que mesmo sendo dia de jogo, a livraria permaneceria aberta durante todo o dia. 


Uma menina que acompanhava o grupo perguntou se eu não assistiria a partida e respondi que não, que estava meio enjoado de futebol e que para mim não fazia a menor diferença quem ganhasse ou perdesse. Pois foi aí que ela fuzilou-me sem piedade: 


Credo tio! Como o senhor é alienado. 


Deve ser a idade, respondi. Em 68 quando eu tinha a sua idade, jovens do mundo inteiro iniciaram uma gigantesca luta contra a alienação. Aqui no Brasil, já fazia dez anos que João Havelange já era o presidente da CBD, que depois virou CBF, e seu genro, Ricardo Teixeira continua presidente até hoje. É.  Acho que além de perdermos a luta ainda trocamos os papéis. Hoje os alienados somos nós e a turma do poder está a gargalhar da nossa presunção de mudar alguma coisa.









Arte de Carl Beineke




O Outro


A Karen é uma das minhas clientes especiais na livraria. Uma pessoa rara, com muito mais idéias na sua cabeça de quinze anos do que a maioria das pessoas que conheço com cinquenta e um. Outro dia fui ao seu blog e numa de suas crônicas ela lembra que muita gente, por uma razão ou outra, acaba vivendo a vida dos outros.

Verdade isso. É até meio complicado esse negócio de viver a vida dos outros. Hoje de manhã, por exemplo, cheguei à livraria e tive a nítida impressão de que o cadeado estava devidamente fechado, mas não estava do jeito que deixei ontem. Bem, pode até ter sido anteontem, só que neste caso, quem veio trabalhar ontem? Posso estar enganado ou quem sabe, alguém que não conheço estar vivendo a minha vida. Se for alguém conhecido, posso investigar e sendo conveniente, até viver a vida dele e deixar assim mesmo. Não. Não daria certo. Gosto demais da livraria, da minha companheira, dos meus gatos, dos meus filhos e da minha vida. Nesse caso preciso ficar atento e descobrir quem estará vivendo a minha vida. E se for mais de um? Pensando bem, ainda estou com um pouco de sono esta manhã. Será que sou eu mesmo abrindo a livraria? E se eu ainda estiver dormindo e for o outro abrindo o cadeado? Claro, eu deixei-o de uma maneira diferente e ele estranhou por que ele ainda não se deu conta que está vivendo a minha vida. Droga. Odeio vento frio entrando por baixo das cobertas. Deus! Uma perna cabeluda na minha cama! Será que tem mais alguém vivendo a minha vida? Ah. Meu gato ainda me mata de susto. Droga. Agora não lembro o que eu estava sonhando.

O blog da Karem: http://intimidadecomaspalavras.blogspot.com/




Sombra



Caminhava passos alongados sobre o calçadão que parecia ondular junto com as águas do lagorio numa agradável vertigem de quem tem seu rosto acariciado suavemente pelo calor de um sol ainda um pouco adormecido espreguiçando-se por entre as torres dos morros da margem oposta que projetava sua sombra saltitante ao seu lado a qual ora subia num banco ora numa pedra e ele diminuiu o passo para observá-la melhor enroscar-se nas pernas bonitas da caminhante por quem passava e teve a nítida impressão das duas sombras envolverem-se numa fusão voluptuosa de braços abraços pernas e uma bunda meticulosamente malhada cujos movimentos diminuíram na direta proporção dos seus movimentos até finalmente dar-se conta que estava parado e seus olhos encontravam-se a dois palmos de alguém que lhe fitava sem expressão através das lentes escuras de um Ray-ban. Universo congelado. Têmporas incendiadas. Nem vento, nem pássaros, nem a água se move. Se ao menos houvesse um botão de ejetar.





Sem ciência, preferimos crer na mentira alheia do que em nossa própria realidade

          Aqui comigo e em algumas conversas mentais com minha gata, eu nutria uma espécie de esperança de que mais cedo ou mais tarde os e...