segunda-feira, 27 de dezembro de 2010

Conto de Bukowski que está no livro "Ao Sul de Lugar Nenhum".

Você não consegue escrever uma História de amor

Margie ia sair com um sujeito, mas, no caminho, esse sujeito encontrou com outro que vestia um casaco de couro e o sujeito com casaco de couro abriu o casaco de couro e mostrou as tetas e o outro sujeito foi até a casa de Margie e disse que não poderia mais ir ao encontro, porque esse sujeito, vestindo um casaco de couro, havia lhe mostrado as tetas e ele ia trepar com esse sujeito. Então Margie foi até a casa de Carl. Carl estava em casa e ela se sentou e disse para Carl:
- Um sujeito ia me levar para um café com mesas na calçada e íamos beber vinho e conversar, só beber vinho e conversar, só isso, nada mais, mas no caminho para me encontrar, esse sujeito encontrou outro com um casaco de couro e o sujeito com o casaco de couro lhe mostrou as tetas e agora esse sujeito vai trepar com o sujeito com o casaco de couro e eu fico com a minha mesa e meu vinho e minha conversa.
- Não consigo escrever – disse Carl – Acabou-se.
Então ele se levantou e foi até o banheiro, fechou a porta e deu uma cagada. Carl cagava quatro ou cinco vezes por dia. Não havia mais nada a fazer. Ele tomava cinco ou seis banhos por dia. Não havia mais nada a fazer. Ficava bêbado pela mesma razão.
Margie ouviu a descarga da privada. Então Carl saiu do banheiro.
-Um homem simplesmente não consegue escrever oito horas por dia. Nem mesmo consegue escrever todo dia ou toda semana. É uma situação péssima. Não há nada a fazer além de esperar.
Carl foi até a geladeira e voltou com um pacote de seis garrafas de cerveja Michelob. Abriu uma garrafa.
-Sou o maior escritor do mundo - ele disse.  – Você sabe como isso é difícil?
Margie não respondeu.
- Posso sentir a dor rastejando por todo meu corpo. É como uma segunda pele. Queria poder me livrar dessa pele como cobra.
- Bem, por que você não se deita no tapete e tenta?
- Escute - ele perguntou - , onde foi que a conheci?
- Na Bodega do Barney.
- Bem, isso explica um pouco as coisas. Beba uma cerveja.
Carl abriu a garrafa e lhe entregou.
- É... - disse Margie - eu sei. Você precisa do seu isolamento. Você precisa ficar sozinho. Exceto quando quer trepar,  ou exceto quando nos separamos, então você me liga. Diz que precisa de mim. Diz que está morrendo por causa de uma ressaca. Você enfraquece rápido.
- Enfraqueço rápido.
- E fica tão inerte quando estou por perto, nunca se excita. Vocês escritores são tão... preciosos ... não  suportam pessoas. A humanidade  fede, certo?
- Certo.
-Mas toda vez que nos separamos você começa a fazer festas gigantes que duram quatro dias. E de repente você acorda, começa a FALAR! De repente fica cheio de vida, falando, dançando, cantando, dança em cima da mesa de café, joga garrafas pela janela, encena trechos de Shakespeare. De repente você está vivo... quando estou longe. Ah, fiquei sabendo de tudo!
- Não faço festas. Odeio ainda mais as pessoas nas festas.
- Para  um sujeito que odeia festas, certamente você organiza um bocado delas.
- Escute,  Margie, você não me entende. Não consigo mais escrever. Estou acabado. Em algum lugar tomei uma trajetória errada. Em algum momento, morri durante a noite.
- O único jeito de você morrer é numa dessas suas ressacas gigantescas.
- Jeffers diz que até mesmo o mais forte dos homens fica encurralado.
- Quem foi Jeffers?
- Foi um sujeito que transformou Big Sur numa armadilha para turistas.
- O que ia fazer essa noite?
- Ia ouvir as músicas de Rachmaninoff.
- Quem é?
- Um russo que já morreu.
- Olha pra você. Fica ai sentado.
- Estou esperando. Alguns sujeitos esperam por dois anos. Ás vezes a coisa nunca volta.
- E se nunca voltar?
- Apenas vestirei meus sapatos e descerei a rua principal.
- Por que não arranja um emprego decente?
- Não existem empregos decentes. Se um escritor não consegue sucesso através da criação, está morto.
- Ah, para com isso,Carl! Existem bilhões de pessoas no mundo que não atingem o sucesso pela criação.  Quer me dizer que elas estão mortas?
- Sim.
- E você tem uma alma? Você é um dos poucos que tem uma alma?
- Diria que sim.
- Diria que sim! Você e sua maquininha de escrever!  Você  e os seus cheques mirrados! Minha avó  ganha mais dinheiro que você!
Carl abriu outra garrafa de cerveja.
- Cerveja! Cerveja! Você e a porra da sua cerveja! Isso está nas suas historias também. ”Marty ergueu sua cerveja. Quando levantou os olhos, uma tremenda loira entrou no bar e sentou ao seu lado...” Você está certo. Está acabado. Seu material é limitado, muito limitado. Você não consegue escrever uma  historia decente de amor.
- Você esta certa, Margie.
- Se um homem não consegue escrever uma história de amor, ele é um inútil.
- Quantas você  já escreveu?
- Não digo que sou uma escritora.
- Mas - disse Carl - você parece posar como uma crítica literária infernal.
Margie, depois disso, foi logo embora. Carl ficou sentado e bebeu o resto das cervejas. Era verdade, a escrita o havia deixado. Isso deixaria algum de seus inimigos do subsolo felizes. Eles poderiam aumentar em um tento a marca dos inimigos abatidos. A morte os agradava, em cima ou embaixo da terra. Lembrou-se de Endicott, Endicott sentado dizendo:
- Bem, Hemingway se foi, Dos passos se foi, Petchen se foi, Pound se foi , Berryman pulou daquela ponte... as coisas estão parecendo cada vez melhores.
O telefone tocou. Carl atendeu.
- Sr. Gantling?
- Sim - ele respondeu.
- Gostaríamos de saber se você estaria  interessado em uma leitura de algum dos seus trabalhos na Faculdade Fairmount.
- Bem, sim, qual a data?
- No dia 30 do próximo mês.
- Acho que não tenho nada marcado para esse dia.
- Nosso pagamento geralmente é de cem dólares.
- Geralmente recebo 150. Ginsberg  ganha mil.
- Mas ele é Ginsberg. Podemos oferecer apenas cem.
-Tudo bem.
- Bom, sr. Gantling. Enviaremos os detalhes para você.
- E o transporte? Dirigir até ai não é pouca coisa.
- Ok, 25 dólares pela viagem.
- Ok.
- Gostaria de falar com os estudantes em suas classes?
- Não.
- Oferecemos um almoço grátis.
- Vou aceitar o almoço.
- Bom, Sr. Gantling, estaremos esperando para vê-lo em nosso campus.
- Nos falamos.
Carl foi até o quarto. Olhou para a máquina de escrever. Colocou uma folha de papel  no rolo, então observou uma garota com uma minissaia surpreendentemente curta cruzar pela frente de sua janela. Depois começou a escrever:
“Margie ia sair com um sujeito, mas,no caminho, esse sujeito encontrou um outro sujeito que vestia um casaco de couro e o sujeito com casaco de couro abriu o casaco de couro e mostrou as tetas e o outro sujeito foi até a casa de Margie e disse que não poderia mais ir ao encontro, porque esse sujeito vestindo um casaco de couro, havia lhe mostrado as tetas...”
Carl ergueu sua cerveja. Era bom voltar a escrever.

Ao Sul de Lugar Nenhum
Charles Bukowski
Tradução de Pedro Gonzaga
L&Pm Editores 




sábado, 25 de dezembro de 2010

O Rio que gostei de viver.

      Viver o Rio de Janeiro e muito melhor do que vê-lo.      












Depois de quatro meses de intensa atividade na livraria e na feira do livro de Porto Alegre, finalmente chegou a esperada semana de folga no Rio de Janeiro, programada com amigos cariocas, baianos, paulistas, mineiros e cearenses da comunidade História e Música. Quando se fala em semana de férias e descanso no Rio de Janeiro, nos vem à mente a imagem do Corcovado, Copacabana, Ipanema, Cristo Redentor, uma rede balançando preguiçosa, um violão tocando, água de coco gelada e preguiça. Não deu tempo para nada disso. Ainda bem, pois o que encontrei é a verdadeira riqueza do Rio de Janeiro: O povo carioca. No mais, andamos pela Vila Isabel, pelo Vaca Atolada na Lapa, na Cidade do Samba, e curtimos um lindo domingo na roda de choro da praça São Salvador no Flamengo. A Pedra do Sal não rolou mas fica para a próxima. 
Agradeço a Vó Jací, sempre atenta e preocupada com tudo e ao Orlando e a Roh que nos mostraram este Rio Maravilhoso. Obrigado Carlão pelo carinho. Um abraço muito especial aos amigos Fabiana e Júlio de Minas, ao Pino e sua turma da Bahia e a Zelia lá do Crato (Vamos aparecer por lá hora dessas), à Mônica, Conceição e Márcia (as meninas superpoderosas de São Paulo), e ao Luis Fernando do Samba na Fonte e ao Companheiro Ernesto, obrigado pelo livro. Sem esquecer da Thaís, da Elizabeth, da Ana Lúcia e da Terezinha.  Parabéns ao Orlando que teve sua composição escolhida para samba enredo da Vizinha Faladeira. 
Só para não perder o costume, aproveitei o tempo de viagem e espera nos aeroportos lendo Bukowski, cujo linguajar típico, escrachado e escatológico serviu-me de preparação para algumas palavras típicas do linguajar carioca (adoram falar porra e merda). Levei a edição pocket da L&pm do Ao Sul de Lugar Nenhum, escrito lá nos anos 70 que traz um Bukowski maduro e no auge da fama. No Livro diversos contos são protagonizados pelo Chinaschi, espécie de alter ego do autor e a maioria de seus personagens são bêbados, prostitutas, vagabundos, drogados e alienados da sociedade, que nos emocionam pelo singelo e e pela profundidade de seus sonhos. Bukowski nos mostra a poética da miséria humana que de alguma forma ou outra me remete diretamente a poética da favela que vi da janela do avião. E a propósito, foi impressão minha ou tem poucas livrarias no Rio de Janeiro?


segunda-feira, 15 de novembro de 2010

Números da Feira do Livro de Porto Alegre


Ao encerrar-se a quinquagésima sexta edição da Feira do Livro de Porto Alegre, chega a hora de contabilizar os números. Minhas anotações não são muito precisas e podem variar dois ou trinta por cento  para mais ou para menos, tanto faz. Na banca da Livraria Entrelinhas estávamos entre quatro: Eu, meus filhos Hannah e Carl e a Joice, funcionária da Livraria e aos finais de semana e feriados contávamos com a preciosa ajuda da Marvione e do Carlão da Editora Casa dos Espíritos de Belo Horizonte. Ao todo, em dezesseis dias de feira, recebemos mil trezentos e vinte seis abraços de amigos, e  mil quatrocentos e trinta e dois beijos (aqui pode ter algum erro pois não lembro se contei aqueles de dois beijinhos e até alguns que ainda insistem em três como um só ou não). Comercializamos oitocentas e trinta e duas histórias de amor, e setecentas e vinte seis histórias e contos de terror (aqui também não sou muito preciso,  pois vários dos best-sellers atuais, aqueles de vampiros e vampiras, são uma espécie de mistura do conde Drácula modernizado com aquelas revistas de romance como Júlia, Sabrina e outras). Anotei ainda cento e vinte oito livros de autoajuda,  novecentos e quatro livros espíritas e de espiritualidade, duzentos e trinta e duas histórias infantis e diversos outros gêneros que não anotei de variedades, poesia, biografias e tantos outros. Contabilizei  dois novos amigos de Belo Horizonte, o Marcão e a Marvione que ficarão para sempre em nossos corações. Anotei uma turma de novos amigos dos nossos vizinhos da Editora Rbs, a Claudia, a Melissa, a Samantha, a Sabrina, o Leandro e o Rafael. Marquei em minha planilha de visitantes cento e vinte oito pares de olhinhos encantados, três mil novecentos e setenta e sete pares de olhos experientes e conhecedores do assunto, dois mil quatrocentos e sessenta pares de olhos curiosos.  Perdi as contas lá pela décima oitava hora de poesias recitadas, e esqueci de anotar o tempo durante as histórias infantis, pois estava ocupado demais vendo os sorrisos das crianças. Na minha tabela ainda tinha uma coluna para os acenos de mão, mas parei de marcar X por volta de mil e pouco e deveria ter anotado as saudações de longe: “Terra é Guaíba” que ouvia esporadicamente entre a multidão de mais de um milhão e meio de visitantes da feira do Livro de Porto Alegre. Abandonei a contabilidade quando percebi que não tinha como contabilizar tudo o que acontece na feira do livro, e é impossível reduzir a números tamanha manifestação popular e cultural. Como uma folha no leito de um rio de livros, deixei-me levar pela música, pela poesia, e pela arte dos artistas que como os poetas e escritores, fazem da Feira do Livro de Porto Alegre o mais importante palco para suas criações.

domingo, 25 de julho de 2010

Coleção Biblioteca Borges

A Coleção Biblioteca Borges da Companhia da Letras é composta por 14 títulos: O Aleph; Antologia Pessoal; Discussão; Ensaio Autobiográfico; O Fazedor; Ficções; O Informe de Brodie; O Livro de Areia; O Livro dos Seres Imaginários; Outras Inquisições; O Outro O Mesmo; Poesia, Primeira Poesia e Prólogos com um Prólogo de Prólogos. Não é fácil ler Borges, mas é absolutamente gratificante. O mestre do conto presenteou-nos com verdadeiras obras-primas que permanecerão no mundo da literatura enquanto esta existir. Do mundo fantástico de Borges, cujas primeiras obras foram publicadas em 1920, escolhi O Aleph (1949) para retirar a amostra que publico a seguir.  A Biografia de Tadeo Isidoro Cruz é uma glosa de Martin Fierro com um resultado maravilhoso. Quem ainda não leu, aproveite agora.




Biografia de
Tadeo Isidoro Cruz
(1829-74)

I’m looking for the face I had
Before the world was made.
W.B. Yeats, The Winding Stair

No dia 6 de fevereiro de 1829, os montoneros que, já fustigados por Lavalle, marchavam do sul para se incorporar às divisões de López, fizeram alto numa estância cujo nome ignoravam, a três ou quatro léguas de Pergamino; por volta do amanhecer, um dos homens teve um pesadelo tenaz: na penumbra do galpão, o grito confuso acordou a mulher que dormia com ele. Ninguém sabe o que sonhou, pois no outro dia, às quatro, os montoneros foram desbaratados pela cavalaria de Suarez e a perseguição durou nove léguas, até os capinzais já lúgubres, e o homem pereceu numa sanga, com o crânio partido por um sabre das guerras do Peru e do Brasil. A mulher se chamava Isidora Cruz; o filho que teve recebeu o nome de Tadeo Isidoro.
Meu propósito não é repetir sua história. Dos dias e noites que a compõem, só me interessa uma noite; do restante só vou relatar o indispensável para se entender aquela noite. A aventura consta num livro insigne, ou seja, num livro cuja matéria pode ser tudo para todos (1 Coríntios 9,22), pois é capaz de quase inesgotáveis repetições, versões, perversões. Os que comentaram, e são muitos, a história de Tadeo Isidoro destacam a influência da planície sobre sua formação, mas gaúchos idênticos a ele nasceram e morreram nas ribeiras selvagens do Paraná e nas coxilhas uruguaias. Viveu, isso sim, num mundo de barbárie monótona. Quando, em 1974, morreu de uma varíola maligna, nunca vira uma montanha nem um bico de gás nem um moinho. Tampouco uma cidade. Em 1849, foi a Buenos Aires com uma tropa de propriedade de Francisco Xavier Acevedo, os tropeiros entraram na cidade para esvaziar os bolsos; Cruz receoso, não saiu de uma pousada na vizinhança dos currais. Ali passou muitos dias, taciturno, dormindo no chão, mateando, levantando ao alvorecer e se recolhendo à noitinha. Compreendeu (além das palavras e mesmo do entendimento) que a cidade nada tinha a ver com ele. Um dos peões, bêbado, zombou dele. Cruz não deu troco, mas nas noites da volta, junto ao fogo, o outro amiudou as zombarias, e então Cruz (que antes não demonstrava rancor nem mesmo contrariedade) o estatelou com uma punhalada. Fugitivo, teve de se resguardar num tremendal; noites mais tarde, o grito de uma chajá avisou-o de que a polícia o havia cercado. Experimentou a faca numa moita; para que não estorvassem a marcha a pé, tirou as esporas. Preferiu lutar a entregar-se. Foi ferido no antebraço, no ombro, na mão esquerda; feriu de morte os mais valentes da patrulha; quando o sangue correu entre seus dedos, lutou com mais coragem do que nunca; por volta do alvorecer, aturdido pela perda de sangue, foi desarmado. O exército desempenhava, então, uma função penal: Cruz foi destinado a um fortim da fronteira norte. Como soldado raso, participou das guerras civis; às vezes combateu por sua província natal, às vezes, contra. No dia 23 de janeiro de 1856, nas lagunas de Cardoso, foi um dos trinta cristãos que, sob o comando do sargento-mor Eusebio Laprida, lutaram contra duzentos índios. Naquela ação sofreu um ferimento de lança.
Na sua história obscura e valorosa são freqüentes os hiatos. Por volta de 1868 sabemos que estava de novo em Pergamino: Casado ou amancebado, pai de um filho, dono de uma fração de campo. Em 1869 foi nomeado sargento da polícia rural. Corrigira o passado; naquele tempo devia se considerar feliz, embora no fundo não o fosse. (Esperava-o, secreta no futuro, uma lúcida noite fundamental: a noite em que por fim viu seu próprio rosto, a noite em que por fim ouviu seu nome. Bem entendida, aquela noite esgota sua história; ou melhor, um instante daquela noite, um ato daquela noite, porque os atos são nosso símbolo.) Qualquer destino, por longo e complicado que seja, consta na realidade de um único momento; o momento em que o homem sabe para sempre quem é. Conta-se que Alexandre da Macedônia viu seu futuro de ferro refletido na fabulosa história de Aquiles; Carlos XII da Suécia, na de Alexandre. A Tadeo Isidoro Cruz, que não sabia ler, esse conhecimento não foi revelado num livro; viu-se a si mesmo num entrevero e num homem. Os fatos aconteceram assim:
Nos últimos dias do mês de junho de 1870, recebeu a ordem de prender um malfeitor que devia duas mortes à justiça. Trata-se de um desertor das forças que o coronel Benito machado comandava na fronteira sul; numa bebedeira assassinara um preto num prostíbulo; noutra, um habitante do distrito de Rojas; o informe acrescentava que procedia de Laguna Colorada. Naquele lugar, quarenta anos antes, os montoneros tinham se reunido para a desventura que entregou suas carnes aos corvos e aos cães; dali saiu Manuel Mesa, que foi executado na praça da Victória, enquanto os tambores rufavam para que não se ouvisse sua ira; dali saiu o desconhecido que gerou Cruz e morreu numa sanga, com o crânio partido por um sabre das batalhas do Perú e do Brasil. Cruz esquecera o nome do lugar o nome do lugar; com leve mas inexplicável inquietação reconheceu-o... O criminoso, acossado pelos soldados, foi tramando a cavalo um longo labirinto de idas e vindas; contudo foi por eles encurralado na noite de 12 de julho. Refugiara-se num capinzal. A treva era quase indecifrável; Cruz e os seus, cautelosos e a pé, avançaram rumo as moitas em cujo fundo trêmulo espreitava ou dormia o homem secreto; Gritou uma chajá; Tadeo Isidoro Cruz teve a impressão de já ter vivido aquele momento. O criminoso saiu do abrigo para lutar com eles. Cruz o entreviu, terrível; a cabeleira crescida e a barba cinza pareciam comer seu rosto. Um motivo notório me impede de relatar a luta. Basta lembrar que o desertor feriu de morte ou matou vários dos homens de Cruz. Este enquanto combatia na escuridão (enquanto seu corpo combatia na escuridão), começou a compreender. Compreendeu que um destino não é melhor que outro, mas que todo homem deve acatar o que traz dentro de si. Compreendeu que as divisas e o uniforme o estorvavam. Compreendeu que o outro era ele. Amanhecia na planície desmesurada; Cruz jogou no chão o quepe, gritou que não ia consentir o crime de que matassem um valente e se pôs a lutar contra os soldados, junto do desertor Martin Fierro.

sexta-feira, 9 de julho de 2010

As mulheres do Carpinejar

Mulher perdigueira, o novo livro do Fabrício Carpinejar é ótimo. Em mais de uma centena de crônicas deliciosas sobre relacionamentos e o cotidiano, ele vasculha o dia a dia de seus personagens e dele próprio com olhar crítico, bem humorado, e poético.  Quem duvida que haja poesia no humor do fodido, na cueca pendurada no box, e no velho que fuma as mulheres? O Carpinejar nos leva a passear pelo parque das relações e sentimentos como se fossemos cãezinhos conduzidos pela coleira. Entre uma fungada nos pés de alguém e uma mijada num poste, lemos textos como este:

Livremente
Esperava o sol na casa de meu irmão Miguel em São Sepé, cidadezinha acolhedora de 25 mil habitantes no centro do RS. Nos fundos do seu quintal, sentei numa pedra enorme, esquecida por um guindaste ou um dinossauro. Contornava com a boca o caroço da maçã. Raspava as reentrâncias, brincando em mordiscar a semente com a língua.
Os pássaros davam cambalhotas e perseguiam o que parecia ser, em primeiro momento, uma borboleta negra, uma bruxa, mas logo se mostrou um morcego. Espantoso: aves e morcegos convivendo como amigos de jardim, colegas da escola do cisco. Dia e noite entrosados, escuro e luz criando cumplicidade dos galhos e correndo na madrugada ainda sombria. Esguichos e piares se tocavam e se ajudavam na escada das sombras. O flamboyant meditava ao meu lado, com as raízes expostas (ou seriam pernas dobradas?). Não duvido que a árvore estivesse abrindo suas coxas de propósito.
Espantoso mesmo era um córrego que descia a lomba do pátio. Demorei a definir sua natureza. Um filete protegido por tijolos, que cortava o terreno na diagonal e sumia pelas frestas do muro. Um barulho de calha no chão, suave e despretensioso.
- Miguel, você tem um córrego?
- Não, é da cidade – respondeu e mudou de assunto.
A corrente seguia para o vizinho adiante que migrava ao vizinho seguinte e atravessava a rua José Cândido Ferreira. Um ziguezague estranho e encantador, não parando em poços artesianos. Ninguém impediu o córrego de completar o passeio pelo morro. As casas foram construídas sem modificar seu desenho sinuoso.
Ele atravessa paredes e escarpas com suas pernas de vento. Nenhum dos moradores se projetou dono do córrego e o amarrou à sua residência. Respeitam a sua vontade. Não o domesticaram, não o reduziram a um cão numa coleira. Não o balearam como invasor, não atiraram em suas costas, não discutiram sua guarda na justiça. Não interromperam o corredor de ervas e cascalhos, não cercaram o tombo da água. Deixaram-no ir, desimpedindo o caminho. Recebe uma preferência de pedestre, uma licença de gestante.
Se fosse numa outra cidade, alguém declararia que o córrego é seu. Em São Sepé, ele é de ninguém. Um animal sussurrante, misturando-se à grama e ao barro, serpeando para se avolumar lá longe numa cascata.
Os habitantes não diminuem o valor daquilo que não enxergam. Ter é deixar ir.
O córrego não cansa de voltar.

Mulher Perdigueira
Fabrício Carpinejar
Bertrand Brasil

sábado, 5 de junho de 2010

Três Dúvidas

Três dúvidas é um livro de Leonardo Brasiliense que apresenta três novelas, cujos personagens envolvem-se, cada um a seu modo, numa espécie de vertigem com enormes dificuldades de conhecer a realidade. Ele nos pergunta de certa forma até que ponto nossos sentimentos são verdadeiros e correspondem a realidade? Nossos pensamentos são reais? Como faço para não me perder na vastidão das lógicas possíveis para os sentimentos provocados por minha experiência da vida? Qual é esse fio que separa a loucura da sanidade, o vago do nítido, a impressão do conhecimento?

Alguns trechos de
UM DIA EM COMUM:

“Aposentou-se faz um ano. Era corretor de seguros, agora é um aposentado, simplesmente, não um “corretor de seguros aposentado”. Tem a impressão de que a aposentadoria joga todos nessa última vala, sem importar o que faziam antes, uma vala rasa e aberta a toda mesmice. Fulano era funcionário, agora é aposentado; Beltrano era mecânico, agora é aposentado; o dentista, aposentado; o cozinheiro, aposentado.”
“Ele passou as últimas horas sentado no quintal, ora cochilando, ora olhando o poço. Sente que passou a manhã toda olhando o poço. Tem a impressão de que passou a vida toda olhando. Pior, sente que ainda passará o resto de seus dias assim, diante daquela construção vazia, inútil. Apesar da secura, e talvez por ela mesma, o poço é sólido, imperioso e, devido à escuridão, não se sabe até onde vai, o quão profundo. José Francisco sabe é que não tem água. Dele sai um ar úmido de poço seco. Um ar frio que penetra no corpo de quem o respira. Penetra até a raiz do medo, lá onde o que se teme é desconhecido, teme-se o que vier. É um medo que José Francisco não tinha quando criança, um medo que criança nenhuma tem. Criança, quando chega à boca de um poço desses, grita para ouvir o eco. José Francisco já não pode fazer essa brincadeira, teme o que possa ouvir.”
(...) Só olhava para os cabelos grisalhos do irmão, muito mais brancos que os seus. O irmão, aliás, é menos careca.
- Tem certeza que não quer um cafezinho?
O Irmão é três anos mais velho e ainda não se aposentou. Nem fala nisso. Chegou a criticá-lo quando ele parou de trabalhar.
(...) O Irmão se importa com José Francisco, parece sempre compreender seus motivos, mesmo que discorde. É apenas três anos mais velho, mas se comporta como pai.
- Você quase não falou nada hoje. Aconteceu alguma coisa?
José Francisco toma o último gole de café, larga a xícara na mesa, apanha o guardanapo e segura-o sobre a boca. O ato de limpar-se dá lugar a uma idéia mais urgente, uma idéia que o paralisa, não por receio ou medo, e sim porque lhe soa estranhamente simples: “E se eu matasse meu irmão?”.

Três Dúvidas.
Novelas de Leonardo Brasiliense
Companhia das Letras

domingo, 23 de maio de 2010

O Mal-estar na Cultura (Das Unbehagen in der Kultur)

Alguns trechos do livro, escrito em 1929 e publicado pela primeira vez em 1930:

(p.41) É impossível escapar à impressão de que os seres humanos geralmente empregam critérios equivocados, de que ambicionam poder, sucesso e riqueza para si mesmos e os admiram nos outros enquanto menosprezam os verdadeiros valores da vida. No entanto ao efetuar qualquer juízo geral desse tipo, corre-se o risco de esquecer a variedade do mundo humano e de sua vida psíquica.

(p.56) Quanto às necessidades religiosas, parece-me imperioso derivá-las do desamparo infantil e do anseio da presença paterna que ele desperta, tanto mais que esse sentimento não se prolonga simplesmente a partir da vida infantil, mas é conservado de modo duradouro pelo medo das forças superiores do destino.
(p.56) A origem da atitude religiosa pode ser seguida nitidamente até o sentimento de desamparo infantil.

(p.58) O Homem comum entende por sua religião, o sistema de doutrinas e promessas que, por um lado, lhe esclarece os enigmas deste mundo com invejável completude e, por outro, lhe assegura  que uma Providência cuidadosa zelará por sua vida e numa existência no além, compensará eventuais frustrações. O Homem comum não consegue imaginar essa Providência de outro modo a não ser na pessoa de um pai grandiosamente elevado. Somente um pai assim é capaz de conhecer as necessidades da criança humana, compadecer-se com as suas súplicas, apaziguar-se com os sinais de seu arrependimento. Isso tudo é tão manifestadamente infantil, tão alheio à realidade, que se torna doloroso para uma mentalidade humanitária pensar que a grande maioria dos mortais nunca se elevar acima dessa concepção de vida.

(p.61) A questão da finalidade da vida foi colocada inúmeras vezes; Jamais se obteve uma resposta satisfatória e talvez nem sequer a admita...  (...) parece, antes,  que temos o direito de deixar tal pergunta sem resposta. Seu pressuposto parece ser aquela arrogância humana da qual já conhecemos tantas manifestações. Não se fala de uma finalidade da vida dos animais, a não ser que seu destino consiste em servir ao homem. (...)  o que os próprios seres humanos, através de seu comportamento, revelam ser a finalidade e o propósito de suas vidas? O que exigem da vida, o que nela querem alcançar? È difícil errar a resposta:  eles aspiram à felicidade, querem se tornar felizes e assim permanecer. Toda permanência de uma situação anelada pelo princípio do prazer fornece apenas uma sensação tépida de bem-estar; somos feitos de tal modo que apenas podemos gozar intensamente o contraste e somente muito pouco o estado.

(p.65) ( ...) todo sofrimento é apenas sensação, existe apenas na medida em que o percebemos, e apenas o percebemos em conseqüência de certas disposições de nosso organismo.

(p.66) O êxito dos tóxicos na luta pela felicidade e no afastamento da desgraça é tão apreciado como benefício que tanto indivíduos como povos lhes concederam um lugar fixo na sua economia libidinal.

(p.72)  É particularmente digno de nota o caso em que um grande número de pessoas empreende conjuntamente a tentativa de obter garantias de felicidade e proteção contra o sofrimento mediante uma transformação delirante da realidade. E quem toma parte do delírio obviamente nunca o reconhece como tal.
Como última técnica de vida, que ao menos lhe promete satisfações substitutivas, oferece-se a ele a fuga para a doença neurótica, na maioria das vezes já efetuada na infância.


(p.80) ( ...) as três fontes donde provém nosso sofrimento: O poder superior da natureza, a fragilidade de nosso próprio corpo e a deficiência das disposições que regulam os relacionamentos dos seres humanos, na família, no estado e na sociedade.

(p.81) (... )topamos com uma asserção que é tão espantosa que queremos nos deter nela. Segundo tal asserção, uma grande parte da culpa pela nossa miséria é de nossa chamada cultura; seríamos muito mais felizes se desistíssemos dela e retornássemos as condições primitivas. É certo que pertence justamente a essa mesma cultura tudo aquilo com que tentamos nos proteger da ameaça oriunda das fontes de sofrimento.

(p.109) O desleixo da linguagem no emprego da palavra “amor” encontra uma justificativa genética. É chamada de amor a relação entre um homem e uma mulher que em razão de suas necessidades genitais fundaram uma família, mas também recebem esse nome os sentimentos positivos entre pais e filhos e entre os irmãos na família, embora tenhamos que descrever essa relação como amor de meta inibida, como ternura. Em suas origens o amor de meta inibida foi plenamente sensual, e ainda continua a sê-lo na inconsciente do homem. Ambos,  o amor plenamente sensual e o amor de meta inibida, estendem-se além da família e produzem novas ligações com pessoas até então estranhas, O amor genital leva à formação de novas famílias, o de meta inibida, a “amizades” que se tornam culturalmente importantes porque escapam a algumas limitações do amor genital – por exemplo, à sua exclusividade. Mas a relação do amor com a cultura, perde o seu caráter inequívoco no decorrer do desenvolvimento. Por um lado, o amor se o0põe aos interesses da cultura; por outro, esta ameaça o amor com sensíveis limitações.

(p.110) (...)  uma das principais tendências da cultura é aglomerar os seres humanos em grandes unidades. A família, porém, não quer largar o indivíduo.

(p.113) (...) A cultura atual (1929)  deixa claro que apenas permitirá relações sexuais sobre a base de um compromisso único, indissolúvel, entre um homem e uma mulher, que não aprecia a sexualidade como fonte independente de prazer e que apenas está disposta a tolerá-la como fonte até agora insubstituível para a reprodução humana. Isso é um extremo, obviamente. É sabido que se mostrou irrealizável, mesmo por curtos períodos. Somente os fracotes se submeteram a um roubo tão considerável de sua liberdade sexual; 

(p.115)  Às vezes acreditamos perceber que não é apenas a pressão da cultura, mas algo na essência da própria função que nos nega a satisfação completa e nos impele para outros caminhos. Pode ser um erro; é difícil decidir.    (...) também o ser humano é uma criatura animal de inequívoca disposição bisexual. O indivíduo corresponde a uma fusão de duas metades simétricas, das quais, segundo a opinião de alguns pesquisadores, uma delas é inteiramente masculina e a outra, feminina. Também é possível que cada metade fosse originalmente hermafrodita.

(p.123) (...) o ser humano não é uma criatura afável e carente de amor que, no máximo, é capaz de se defender quando atacada, mas conta com uma cota considerável de tendência agressiva no seu dote de impulsos. Por esse motivo o próximo não é apenas um possível ajudante e um  possível objeto sexual, mas também uma tentação para se satisfazer nele a agressão, explorar sua força de trabalho se recompensá-lo, usá-lo sexualmente sem o seu consentimento, apropriar-se de seus bens, humilhá-lo, causar-lhe dor, torturá-lo e matá-lo.

(p.125)  A cultura precisa fazer de tudo para impor limites aos impulsos agressivos do homem...  Daí, portanto, o emprego de métodos que têm o propósito de estimular os homens a identificações e relacionamentos amorosos de meta inibida, daí a limitação da vida sexual e daí também o mandamento ideal que ordena amar o próximo como a si mesmo.

(p.126)  Os comunistas acreditam ter encontrado o caminho para a redenção do mal. (...) Caso a propriedade privada fosse abolida,  (...) visto que todas as necessidades estariam satisfeitas, ninguém teria motivo para ver no outro o seu inimigo; (...) Com a supressão da propriedade privada, a agressividade humana é despojada de um de seus instrumentos, (...) mas certamente não o mais poderoso. Quanto às diferenças de poder e de influência, das quais a agressão abusa para os seus propósitos, nada se modifica. A agressão não foi criada pela propriedade. (...) resta ainda o privilégio oriundo dos relacionamentos sexuais, que se tornará a fonte da mais intensa inveja e da mais violenta hostilidade entre os homens tornados iguais em todos os demais aspectos. Caso também se suprima esse privilégio por meio da completa liberação da  vida sexual, eliminando assim a família, embrião da cultura, é impossível prever quais os novos caminhos que o desenvolvimento cultural poderá trilhar;

(p.130) Se a cultura impõe sacrifícios tão grandes não apenas à sexualidade, mas também à tendência agressiva do homem, entendemos melhor que se torna difícil para ele ser feliz no âmbito da cultura. As coisas eram de fato melhores para o homem primitivo, visto que ele não conhecia qualquer restrição a seus impulsos. Em compensação, a segurança de gozar essa felicidade por longo tempo era muito pequena.  O Homem aculturado trocou uma parcela de possibilidades de felicidade por uma parcela de segurança. Não esqueçamos , porém, que na família primeva apenas o chefe gozava dessa liberdade de impulsos;  os demais viviam em opressão escrava.


(p.141) Acrescentamos que a cultura é um processo a serviço de Eros, que deseja reunir indivíduos humanos isolados, depois famílias, então tribos, povos e nações em uma grande unidade, a humanidade. Não sabemos por que isso tem de acontecer; essa é precisamente a obra de Eros.

(p.161) Visto que a cultura obedece a um ímpeto erótico interno que lhe ordena reunir os seres humanos numa massa intimamente coesa, essa meta só pode ser alcançada por meio de um reforço sempre crescente do sentimento de culpa. O que começou em relação ao pai se consuma em relação à massa.

O Mal-estar na Cultura
Sigmund Freud
Tradução do Alemão de Renato Zwick
191 páginas
L&PM. 

domingo, 2 de maio de 2010

A Infinita Fiadeira







Para Hannah
que tece
suas teias.

(A aranha atéia
Diz ao aranho na teia
O nosso amor
está por um fio!)

A aranha, aquela aranha, era tão única: não parava de fazer teias! Fazia-as de todos os tamanhos e formas. Havia, contudo, um senão: ela fazia-as, mas não lhes dava utilidade. O bicho repaginava o mundo. Contudo, sempre inacabava as suas obras. Ao fio e ao cabo, ela já amealhava uma porção de teias que só ganhavam senso no rebrilho das manhãs.
E dia e noite: dos seus palpos primavam obras, com belezas de cacimbo gotejando, rendas e rendilhados. Tudo sem fim nem finalidade. Todo o bom aracnídeo sabe que a teia cumpre as fatais funções: lençol de núpcias, armadilha de caçador. Todos sabem menos a nossa aranhinha, em suas distraiçoeiras funções.
Para a mãe-aranha aquilo não passava de mau senso. Para quê tanto labor se depois não se dava a indevida aplicação? Mas a jovem aranhiça não fazia ouvidos. E afaiatava, alfinetava, cegava os nós. Tecia e retecia o fio,  entrelaçava e reentrelaçava mais e mais teia. Sem nunca fazer morada em nenhuma. Recusava a utilitária vocação da sua espécie.
- Não faço teias por instinto.
- Então, faz porquê?
- Faço por arte.
Benzia-se a mãe, rezava o pai. Mas nem com preces. A filha saiu pelo mundo em ofício de infinita teceloa. E em cantos e recantos deixava sua marca, o engenho da sua seda. Os pais, após concertação, a mandaram chamar. A mãe:
-Minha filha, quando é que assentas as patas na parede?
E o Pai:
- Já eu me vejo em palpos de mim...
Em choro múltiplo, a mãe limpou as lágrimas dos muitos olhos enquanto disse:
- Estamos recebendo queixas do aranhal.
- O que é que dizem, mãe?
- Dizem que isso só pode ser doença apanhada de outras criaturas.
Até que se decidiram: a jovem aranha tinha que ser reconduzida aos seus mandos genéticos. Aquele devaneio seria causado por falta de namorado. A moça seria até virgem, não tendo nunca digerido um machito. E organizaram um amoroso encontro.
- Vai ver que custa menos que engolir mosca – Disse a mãe.
E aconteceu. Contudo, ao invés de devorar o singelo namorador, a aranha namorou e ficou enamorada. Os dois deram-se os apêndices e dançaram ao som de uma brisa que fazia vibrar a teia. Ou seria a teia que fabricava a brisa?
A aranhiça levou o namorado a visitar a sua coleção de teias, ele que escolhesse uma, ficaria prova de seu amor.
A família desiludida consultou o Deus dos bichos, para reclamar da fabricação daquele espécime. Uma aranha assim, com mania de gente? Na sua alta teia, o Deus dos bichos quis saber o que poderia fazer. Pediram que ela transitasse para humana. E assim sucedeu: num golpe divino, a aranha foi convertida em pessoa. Quando ela, já transfigurada, se apresentou no mundo dos humanos logo lhe exigiram a imediata identificação. Quem era o que fazia?
- Faço arte.
- Arte?
E os humanos se entreolharam, intrigados. Desconheciam o que fosse arte. Em que consistia? Até que um, mais velho, se lembrou. Que houvera um tempo, em tempos de que já se perdera memória, em que alguns se ocupavam de tais improdutivos afazeres. Felizmente, isso tinha acabado, e os poucos que teimavam em criar esses pouco rentáveis produtos – chamados de obras de arte – tinham sido geneticamente transmutados em bichos. Não se lembrava bem em que bichos. Aranhas, ao que parece.

Conto: A Infinita Fiadeira.

O Fio das Missangas
Mia Couto
Companhia das Letras

Sem ciência, preferimos crer na mentira alheia do que em nossa própria realidade

          Aqui comigo e em algumas conversas mentais com minha gata, eu nutria uma espécie de esperança de que mais cedo ou mais tarde os e...