quinta-feira, 18 de março de 2010

Tempo de Delicadeza

Tem um livrinho que gosto muito. Tempo de delicadeza do Affonso Romano Sant’ana. Sempre o recomendo para quem ainda não tenha lido. Não perca tempo. Leia logo. Tentei convencer a professora que revirava a livraria a procura de algo para ler enquanto esbravejava contra a governadora. Aguentar um bando de imbecis por essa mixaria! Certamente ela desistiu de ser professora, ou nunca foi. Só não sabe. O livrinho começa assim:


“Entre duas possibilidades, que caminho tomar?
Um dos poemas mais conhecidos da literatura norte-americana foi escrito por Robert Frost (1874-1963). É o famoso “The road not taken”, e foi traduzido pelo poeta português Antônio Simões com o título “O caminho que não tomei”. Está numa recente antologia onde ele verteu competentemente 112 poemas do inglês para nossa língua.
Entre duas possibilidades, que caminho tomar?
Pode ser entre dois amores, dois empregos, duas ruas, dois países. Pode ser uma encruzilhada qualquer. O fato é que a escolha é às vezes algo complicado. Tão complicado
que uns psicólogos norte-americanos criaram a “teoria da dissonância cognitiva” baseada nesse drama. Como escolhemos as coisas, seja uma geladeira, uma proposta, uma roupa, e que racionalizações fazemos para justificar a direção tomada?"


Se ela tivesse lido certamente pensaria melhor sobre suas escolhas. Não consegui meu intento e ela foi ser feliz com a Nora Roberts na bolsa. Precisava de algo para relaxar. Assim, fica posto que pensar continua doendo muito e fecho com mais um trecho do livrinho do Affonso.


"Sei que as pessoas estão pulando na jugular umas das outras.
Sei que viver está cada vez mais dificultoso.
Mas talvez por isto mesmo ou, talvez, devido a esse maio azulzinho, a esse outono fora e dentro de mim, o fato é que o tema da delicadeza começou a se infiltrar, digamos, delicadamente nessa crônica, varando os tiroteios, os seqüestros, as palavras ásperas e os gestos grosseiros que ocorreram nas esquinas da televisão e do cinema com a vida. (...)
Sei o que vão dizer: a burocracia, o trânsito, os salários, a polícia, as injustiças, a corrupção e o governo não nos deixam ser delicados.
– E eu não sei?
Mas de novo vos digo: sejamos delicados. E, se necessário for, cruelmente delicados."


Tempo de Delicadeza
Affonso Romano de Sant’ana.
L&PM. R$ 14,00.
Menos que uma recarga de celular.

quarta-feira, 3 de março de 2010

O Albatroz Azul

Bacana ver João Ubaldo Ribeiro dar a volta por cima e brindar-nos com mais uma de suas pérolas. No Albatroz Azul ele conta a história de Tertuliano que por ocasião do nascimento do neto e por achar que a hora da morte estivesse próxima, trata de por alguma ordem ou perspectiva à sua vida. A narrativa flui perfeita entre passagens maravilhosas e trechos deliciosos: “Foi até a gaveta onde guardava o caderno de anotações. Olhou o estojo dos lápis, que estava junto ao caderno, pegou-o como quem fosse usá-lo, logo desistiu. Não ia anotar nada, não havia o quê, nem para quem. Queimaria o caderno, como fez sempre com os outros, esfregaria com os pés suas cinzas ao chão, como sempre lhe dera prazer fazer. Pensou algum tempo em armar e acender a fogueirinha, mas acabou não pegando o caderno. Quem quisesse que o pegasse depois, não ia nem entender direito o que estava escrito. Recostou-se na cadeira, olhou em redor e achou engraçado seu ar involuntário de quem está conferindo tudo, como antes de uma viagem”.
Tertuliano revive a história da sua vida que ele achava tinha sido roubada, pois seu pai vivia com duas irmãs em casas separadas, e para receber herança propôs que Tertuliano, o filho mais velho, se declarasse filho da tia. Cada amigo que encontra para contar da proximidade da sua morte e do nascimento do neto, tem seu próprio linguajar como o barbeiro Nascimento, por exemplo: - “Anelava, pois, por uma palavra do Compadre sobre o tema em pauta, tópico do dia, sem a menor anfibologia ou equívoco. Vox populi, Vox dei, de maneira que não encarava com ceticismo, antes pelo contrário, a convicção popular de que o petiz desgravidado com o pousadeiro apontado na direção lunar desfrutaria de uma vida plena de êxitos e sem empeços dignos de nota.”
Tem personagens como a Zirinha: “.. ela mesma também estava acostumada a dizer coisas que o povo estranhava, mas estranhasse à vontade, que ela não ligava. O Homem podia enfiar seu como-é-o-nomezinho numa mulher, fazer-lhe um filho e desaparecer, mas a mulher tinha que carregar o menino no bucho aporrinhando nove meses, dar de mamar, limpar merda e padecer sobressaltos anos seguidos. Por que além disso tudo, tinha que se conformar com um pai só para todos os seus filhos? E se puxassem todos eles ao lado ruim do macho escolhido, como ficava a mulher?  Ficava velha e cercada de um farrancho de ordinários, empesteando seus últimos anos e lhe tomando tudo o que pudessem.”
O Albatroz Azul é um livro leve e agradável de ler sobre vida, morte, nascer e renascer, onde cada personagem tem suas próprias crenças, sonhos e angústias, sem tentar convencer o leitor de nada, apenas a boa e velha literatura.
O Albatroz Azul
João Ubaldo Ribeiro
Nova Fronteira

Sem ciência, preferimos crer na mentira alheia do que em nossa própria realidade

          Aqui comigo e em algumas conversas mentais com minha gata, eu nutria uma espécie de esperança de que mais cedo ou mais tarde os e...