quarta-feira, 14 de abril de 2010

A Elegância do Ouriço

Num edifício habitado por figurões esnobes e prepotentes de Paris, a zeladora Renée, não hesita em bater a porta no nariz de quem quer que seja, mas esconde uma personalidade dócil, educada, apaixonada por arte e literatura. Oitava filha de camponeses do Fado, todos analfabetos, na escola logo aprendeu a ler, segundo ela foi seu segundo nascimento, mas escondia de todos, pois achava que ela não tinha esse direito. Outra personagem é Paloma, filha de um ministro de estado e de uma espécie de patricinha doutorada em letras e sua irmã mais velha acha que é filosofa e todos acreditam serem muito modernos e descolados. A menina enxerga a realidade por trás das fantasias burguesas de cada um e não consegue aceitar a forma como eles vivem, e decide que se não encontrar um sentido para a vida até o dia de seu aniversário de 13 anos, vai por fogo no apartamento e se suicidar. Com a chegada de um novo morador, um rico empresário japonês aposentado, o destino das duas aproxima-se e elas acabam descobrindo caminhos novos e surpreendentes. A história é muito boa e recheada de reflexões filosóficas e pertinentes. Renée é uma quase-cinderela cuja beleza poucos tem a capacidade de enxergar. A história é um quase-conto-de-fadas que nos ajuda a refletir sobre o tênue fio que mantém a nossa existência.


... “A civilização é a violência dominada, a vitória sempre inacabada contra a agressividade do primata. Pois primatas nós fomos, e primatas permanecemos, uma camélia sobre o musgo que aprendíamos a desfrutar. Aí está toda a função da educação. Que é educar? È propor incansavelmente camélias sobre o musgo, como derivativos à pulsão da espécie, que jamais para e ameaça continuamente o frágil equilíbrio da sobrevivência. Sou muito camélia sobre o musgo. Nada mais, pensando bem, seria capaz de explicar minha reclusão neste cubículo enfadonho. Convencida desde a aurora de minha vida de sua inanidade, eu poderia ter escolhido a revolta e, tomando o céu por testemunha da iniqüidade da minha sorte, explorando as fontes de violência que abundam na nossa condição. Mas a escola fez de mim uma alma cujo destino de vacuidade não levou apenas à renúncia e à clausura. O deslumbramento de meu segundo nascimento preparou em mim o terreno do domínio pulsional; já que a escola me fizera nascer, eu lhe devia fidelidade e, portanto, me conformei com as intenções de meus educadores, tornando-me com docilidade uma criatura civilizada. Na verdade quando a luta contra a agressividade do primata se apodera dessas armas prodigiosas que são os livros e as palavras, o negócio é fácil, e foi assim que me tornei uma alma educada, que extraía dos sinais escritos a força de resistir à própria natureza.


... Para que serve a arte? Para nos dar a breve, mas fulgurante ilusão da camélia, abrindo no tempo uma brecha emocional que parece irredutível à lógica animal. Como nasce a Arte? Nasce da capacidade que tem o espírito de esculpir o campo sensorial. Que faz a arte por nós? Ela dá forma e torna visíveis nossas emoções, e, ao fazê-lo, opõe o selo de eternidade presente em todas as obras que, por uma forma particular, sabem encarnar a universalidade dos afetos humanos.


... Acho que só há uma coisa para fazer: encontrar a tarefa para a qual nascemos e realizá-la o melhor possível, com todas as nossas forças, sem complicar as coisas e sem acreditar que há um lado divino na nossa natureza animal. Só assim é que teremos a sensação de estar fazendo algo construtivo no momento em que a morte nos pegar. A liberdade, a decisão, a vontade, tudo isso são quimeras. Acreditamos que podemos fazer mel sem partilhar o destino das abelhas; mas nós também não somos mais que pobres abelhas fadadas a cumprir sua tarefa e depois morrer.


... A literatura, por exemplo, tem uma função pragmática. Como toda forma de Arte, tem a missão de tornar suportável a realização de nossos deveres vitais. Para uma criatura que, como o humano, molda seu destino na base da reflexão e da reflexividade, o conhecimento que daí decorre tem o caráter insuportável de toda lucidez nua. Sabemos que somos animais dotados de uma arma de sobrevivência, e não deuses moldando o mundo com seu pensamento próprio, e é preciso algo para que essa sagacidade se torne tolerável, algo que nos salve da triste e eterna febre dos destinos biológicos. “


Elegância do Ouriço


Muriel Barbery


Companhia das Letras.

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