domingo, 17 de julho de 2011

Cachorros de Palha

Cada parágrafo do livro Cachorros de Palha de John Gray é importante e oferece uma visão diferente do que imaginamos real no mundo em que vivemos. A grande habilidade deste professor de Pensamento Europeu na London School Of Economics, está em oferecer ao leitor a oportunidade de um novo olhar. De ver pelo outro lado. Ele explora temas filosóficos como a natureza do self, o livre-arbítrio, a moralidade, o progresso e o valor da verdade. O texto a seguir é o prefácio da 6ª edição publicada no Brasil em 2009 pela editora Record.


                        Prefácio

Cachorros de palha é um ataque às crenças impensadas de pessoas pensantes. O humanismo liberal dos dias de hoje possui o poder disseminado que antes pertencia à religião revelada. Os humanistas gostam de pensar que têm uma visão racional do mundo, mas sua crença essencial no progresso é uma superstição, mais afastada da verdade sobre o animal humano do que qualquer outra das religiões existentes.
Fora da ciência, o progresso não passa de um mito. Parece que em alguns leitores de Cachorros de Palha essa observação produziu um pânico moral. Será mesmo verdade, perguntam eles, que ninguém pode questionar o principal artigo da fé das sociedades liberais? Sem ele, não nos desesperaremos? Como trêmulos vitorianos aterrorizados diante do risco de perder a fé, esses humanistas agarram-se ao brocado roto das esperanças progressistas. Os crentes religiosos atuais são mais livres-pensadores. Levados para a margem de uma cultura na qual a ciência reivindica autoridade sobre todo o conhecimento humano, tiveram que cultivar uma capacidade de duvidar. Já os crentes seculares – firmemente subjugados pela sabedoria convencional do tempo – estão sob forte influência de dogmas não examinados.
A visão de mundo secular predominante é um pastiche da ortodoxia científica atual e de esperanças piedosas. Darwin mostrou que somos animais; mas – como os humanistas nunca se cansam de pregar – a maneira como vivemos “depende de nós”. Diferentemente de qualquer outro animal, dizem-nos, somos livres para viver como escolhemos. No entanto a idéia de livre-arbítrio não vem da ciência. Suas origens estão na religião – não numa religião qualquer, mas na fé cristã contra a qual os humanistas se batem tão obsessivamente.
No mundo antigo, os epicuristas especulavam sobre a possibilidade de que alguns eventos pudessem ser não-causados; mas a crença de que os humanos se distinguem de todos os outros animais por terem livre-arbítrio é uma herança cristã. A teoria de Darwin não teria causado tanto escândalo se tivesse sido formulada na Índia hinduísta, na China taoísta ou na África animista. Da mesma forma, é apenas nas culturas pós-cristãs que os filósofos se esforçam tão piedosamente por reconciliar o determinismo científico com uma crença na capacidade única dos humanos de escolher o modo como vivem. A ironia do darwinismo evangélico é que ele usa a ciência para apoiar uma idéia da humanidade que tem sua origem na religião.
Alguns leitores viram Cachorros de palha como uma tentativa de aplicar o darwinismo à ética e à política, mas em parte alguma o livro sugere que a ortodoxia neodarwiniana detenha a última palavra sobre o animal humano. Em vez disso, o darwinismo é estrategicamente exposto, a fim de romper a visão do mundo humanista predominante. Os humanistas buscam em Darwin um apoio para sua abalada fé moderna no progresso; mas não há progresso no mundo revelado por ele. Uma perspectiva verdadeiramente naturalista do mundo não deixa espaço algum para a esperança secular.
Entre filósofos contemporâneos, é uma questão de orgulho ser ignorante em teologia. Por consequência, as origens cristãs do humanismo secular raramente são compreendidas. No entanto eram perfeitamente claras para os seus fundadores. No início do século XIX, os positivistas franceses Henri Saint-Simon e Auguste Conte inventaram a Religião da Humanidade, uma visão de uma civilização universal baseada na ciência; o positivismo tornou-se o protótipo das religiões políticas do século XX. Através do impacto que tiveram sobre John Stuart Mill, fizeram do liberalismo o credo secular que é hoje. Através da profunda influência que exerceram sobre Karl Marx, ajudaram a moldar o “socialismo científico”. Mas ironicamente, pois Saint-Simon é Conte eram críticos ferozes do laissez-faire econômico, também inspiraram, no final do século XX, o culto do livre mercado global. Contei essa história paradoxal, e com frequentes traços de farsa, em meu livro Al-Qaeda e o significado de ser moderno.
O humanismo não é ciência, mas religião – a crença pós-cristã de que os humanos podem fazer um mundo melhor do que qualquer outro em que tenham vivido até agora. Na Europa pré-cristã assumia-se que o futuro seria igual ao passado. O conhecimento e a invenção poderiam avançar, mas a ética permaneceria basicamente a mesma. A história era uma série de ciclos, sem nenhum significado geral.
Contra essa idéia pagã, os cristãos entenderam a história como uma narrativa sobre o pecado e a redenção. O humanismo é a transformação dessa doutrina cristã da salvação em um projeto de emancipação humana universal. A idéia de progresso é uma versão secular da crença cristã na providência. É por isso que era desconhecida entre os antigos pagãos.
A crença no progresso tem outra fonte. Na ciência o crescimento do conhecimento é cumulativo. Mas a vida humana, como um todo, não é uma atividade cumulativa; o que se ganha numa geração pode ser perdido na próxima. Na ciência, o conhecimento é um bem puro; na ética e na política, tanto pode ser um bem quanto um mal. A ciência aumenta o poder humano – e amplia as imperfeições da natureza humana. Ela nos permite viver mais e ter padrões de vida mais elevados do que no passado. Ao mesmo tempo, permite-nos causar destruição – uns aos outros, e à própria Terra – numa escala jamais vista.
A idéia de progresso baseia-se na crença em que o crescimento do conhecimento e o avanço das espécies caminham juntos – se não agora, pelo menos a longo prazo. O mito bíblico da Queda do Homem contém a verdade proibida. O conhecimento não nos torna livres. Ele nos deixa como sempre fomos, vítimas de todo tipo de loucura. A mesma verdade é encontrada no mito grego. A punição de Prometeu, acorrentado a uma rocha por ter roubado o fogo dos deuses, não foi injusta.
Se a esperança no progresso é uma ilusão, como – pode-se perguntar – haveremos de viver? A pergunta parte do princípio de que os humanos podem viver bem apenas se acreditarem que têm o poder de refazer o mundo. No entanto a maior parte dos humanos que já existiram não acreditava nisso – e um grande número teve vidas felizes. A questão presume que o objetivo da vida seja a ação, mas isso é uma heresia moderna. Para Platão, a contemplação era a mais elevada forma de atividade humana. Uma idéia semelhante existia na Índia antiga. O objetivo da vida não era mudar o mundo. Era enxerga-lo corretamente.
Atualmente, essa é uma verdade subversiva, pois implica a vacuidade da política. A boa política é medíocre e improvisada, mas, no início de século XXI, o mundo está apinhado de grandiosas ruínas de utopias fracassadas. Com a esquerda moribunda, a direita tornou-se o abrigo da imaginação utópica. O comunismo global foi seguido pelo capitalismo global. As duas imagens do futuro têm muito em comum. Ambas são horrendas e, felizmente, quiméricas.
A ação política veio a ser um substituto para a salvação, mas nenhum projeto político pode salvar a humanidade de sua condição natural. Por mais radicais que sejam, os programas políticos são modestos expedientes concebidos para lidar com males recorrentes. Hegel escreve em algum lugar que a humanidade só se contentará quando estiver vivendo num mundo construído por si mesma. Ao contrário, Cachorros de palha argumenta a favor de uma mudança que se afaste do solipsismo humano. Os humanos não podem salvar o mundo, mas isso não é razão para desespero. Ele não precisa de salvação. Felizmente, os humanos nunca viverão num mundo construído por si mesmos.
                                       John Gray, maio de 2003.

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