
Li Cem Anos de Solidão há, pelo menos, trinta anos e não foi difícil encontrar um trecho que sempre gostei muito no exemplar que tinha nas mãos:
“Estava enlaçando a cauda quando o sol saiu com tanta força que a claridade rangeu como uma canoa. O ar lavado pela chuva fina de três dias encheu-se de formigas voadoras. Então se deu conta de que tinha desejo de urinar, e que estava adiando até que acabasse de armar o peixinho. Ia para o pátio, às quatro e dez, quando ouviu os clarins distantes, os canhões do bumbo e o júbilo das crianças, e pela primeira vez desde a sua juventude pisou conscientemente numa armadilha da nostalgia e reviveu a prodigiosa tarde de ciganos em que seu pai o levou para conhecer o gelo. Santa Sofia de la Piedad abandonou o que estava fazendo na cozinha e correu até a porta.
- É o circo – gritou.
Em vez de ir até a castanheira, o coronel Aureliano Buendía também foi até a porta da rua e se misturou com os curiosos que contemplavam o desfile. Viu uma mulher vestida de couro no cangote de um elefante. Viu um dromedário triste. Viu um urso vestido de holandesa que marcava o compasso da música com uma concha e uma caçarola. Viu os palhaços dando cambalhotas na cauda do desfile, e viu outra vez a cara de sua solidão miserável quando tudo acabou de passar e não restou nada além do luminoso espaço da rua, e o ar cheio de formigas voadoras, e uns quantos curiosos na beira do precipício da incerteza. Então foi até a castanheira, pensando no circo, e enquanto urinava tratou de continuar pensando no circo, mas não achou mais a lembrança. Enfiou a cabeça entre os ombros como um franguinho, e ficou imóvel com a testa apoiada no tronco da castanheira. A família não ficou sabendo até o dia seguinte, às onze da manhã, quando Santa Sofia de la Piedad foi jogar o lixo no baldio dos fundos e reparou que os urubus estavam baixando.”
Devolvi o exemplar à prateleira. Fechei os olhos e vi a mulher vestida de couro no cangote de um elefante, o dromedário triste, o urso vestido de holandesa que marcava o compasso da música com uma concha e uma caçarola, e os palhaços dando cambalhotas na cauda do desfile. E vi a cara da nossa solidão miserável quando não mais tivermos a capacidade de compreender mestres como Gabriel García Márques.