sábado, 26 de novembro de 2011

Solidão miserável

A 57.ª Feira do Livro de Porto Alegre está encerrada. É hora de refazer estoques, recadastrar e devolver às prateleiras os livros não vendidos. É um trabalho meticuloso e cada livro precisa ser examinado, liberto de manchas, pó e etiquetas. Da caixa tirei um exemplar da bela edição da Record de Cem Anos de Solidão (Por que será que não incluíram os desenhos do Carybé?) em vão, tentei lembrar uma ocasião em que tenha devolvido um Gabriel García Márques depois de uma feira. Não. Nunca nenhum exemplar, muito menos um Cem Anos de Solidão. Olhando a listagem dos livros que esgotaram durante a feira encontrei autoajuda, o livro de um padre cantor, vários romances de vampiros e aventuras infanto-juvenis. Não consigo evitar a melancolia ao pensar que talvez estejamos perdendo a capacidade de compreender metáforas e linguagem literária e passamos a incompreender mestres como Gabriel García Márques. Hoje precisamos histórias diretas, sem rodeiros, sem textos trabalhados. Diretos e simples como quem deixa um bilhete na geladeira para a faxineira.



Li Cem Anos de Solidão há, pelo menos, trinta anos e não foi difícil encontrar um trecho que sempre gostei muito no exemplar que tinha nas mãos:



“Estava enlaçando a cauda quando o sol saiu com tanta força que a claridade rangeu como uma canoa. O ar lavado pela chuva fina de três dias encheu-se de formigas voadoras. Então se deu conta de que tinha desejo de urinar, e que estava adiando até que acabasse de armar o peixinho. Ia para o pátio, às quatro e dez, quando ouviu os clarins distantes, os canhões do bumbo e o júbilo das crianças, e pela primeira vez desde a sua juventude pisou conscientemente numa armadilha da nostalgia e reviveu a prodigiosa tarde de ciganos em que seu pai o levou para conhecer o gelo. Santa Sofia de la Piedad abandonou o que estava fazendo na cozinha e correu até a porta.



- É o circo – gritou.



Em vez de ir até a castanheira, o coronel Aureliano Buendía também foi até a porta da rua e se misturou com os curiosos que contemplavam o desfile. Viu uma mulher vestida de couro no cangote de um elefante. Viu um dromedário triste. Viu um urso vestido de holandesa que marcava o compasso da música com uma concha e uma caçarola. Viu os palhaços dando cambalhotas na cauda do desfile, e viu outra vez a cara de sua solidão miserável quando tudo acabou de passar e não restou nada além do luminoso espaço da rua, e o ar cheio de formigas voadoras, e uns quantos curiosos na beira do precipício da incerteza. Então foi até a castanheira, pensando no circo, e enquanto urinava tratou de continuar pensando no circo, mas não achou mais a lembrança. Enfiou a cabeça entre os ombros como um franguinho, e ficou imóvel com a testa apoiada no tronco da castanheira. A família não ficou sabendo até o dia seguinte, às onze da manhã, quando Santa Sofia de la Piedad foi jogar o lixo no baldio dos fundos e reparou que os urubus estavam baixando.”



Devolvi o exemplar à prateleira. Fechei os olhos e vi a mulher vestida de couro no cangote de um elefante, o dromedário triste, o urso vestido de holandesa que marcava o compasso da música com uma concha e uma caçarola, e os palhaços dando cambalhotas na cauda do desfile. E vi a cara da nossa solidão miserável quando não mais tivermos a capacidade de compreender mestres como Gabriel García Márques.




Um comentário:

Ventilador

Sem ciência, preferimos crer na mentira alheia do que em nossa própria realidade

          Aqui comigo e em algumas conversas mentais com minha gata, eu nutria uma espécie de esperança de que mais cedo ou mais tarde os e...