sexta-feira, 9 de julho de 2010

As mulheres do Carpinejar

Mulher perdigueira, o novo livro do Fabrício Carpinejar é ótimo. Em mais de uma centena de crônicas deliciosas sobre relacionamentos e o cotidiano, ele vasculha o dia a dia de seus personagens e dele próprio com olhar crítico, bem humorado, e poético.  Quem duvida que haja poesia no humor do fodido, na cueca pendurada no box, e no velho que fuma as mulheres? O Carpinejar nos leva a passear pelo parque das relações e sentimentos como se fossemos cãezinhos conduzidos pela coleira. Entre uma fungada nos pés de alguém e uma mijada num poste, lemos textos como este:

Livremente
Esperava o sol na casa de meu irmão Miguel em São Sepé, cidadezinha acolhedora de 25 mil habitantes no centro do RS. Nos fundos do seu quintal, sentei numa pedra enorme, esquecida por um guindaste ou um dinossauro. Contornava com a boca o caroço da maçã. Raspava as reentrâncias, brincando em mordiscar a semente com a língua.
Os pássaros davam cambalhotas e perseguiam o que parecia ser, em primeiro momento, uma borboleta negra, uma bruxa, mas logo se mostrou um morcego. Espantoso: aves e morcegos convivendo como amigos de jardim, colegas da escola do cisco. Dia e noite entrosados, escuro e luz criando cumplicidade dos galhos e correndo na madrugada ainda sombria. Esguichos e piares se tocavam e se ajudavam na escada das sombras. O flamboyant meditava ao meu lado, com as raízes expostas (ou seriam pernas dobradas?). Não duvido que a árvore estivesse abrindo suas coxas de propósito.
Espantoso mesmo era um córrego que descia a lomba do pátio. Demorei a definir sua natureza. Um filete protegido por tijolos, que cortava o terreno na diagonal e sumia pelas frestas do muro. Um barulho de calha no chão, suave e despretensioso.
- Miguel, você tem um córrego?
- Não, é da cidade – respondeu e mudou de assunto.
A corrente seguia para o vizinho adiante que migrava ao vizinho seguinte e atravessava a rua José Cândido Ferreira. Um ziguezague estranho e encantador, não parando em poços artesianos. Ninguém impediu o córrego de completar o passeio pelo morro. As casas foram construídas sem modificar seu desenho sinuoso.
Ele atravessa paredes e escarpas com suas pernas de vento. Nenhum dos moradores se projetou dono do córrego e o amarrou à sua residência. Respeitam a sua vontade. Não o domesticaram, não o reduziram a um cão numa coleira. Não o balearam como invasor, não atiraram em suas costas, não discutiram sua guarda na justiça. Não interromperam o corredor de ervas e cascalhos, não cercaram o tombo da água. Deixaram-no ir, desimpedindo o caminho. Recebe uma preferência de pedestre, uma licença de gestante.
Se fosse numa outra cidade, alguém declararia que o córrego é seu. Em São Sepé, ele é de ninguém. Um animal sussurrante, misturando-se à grama e ao barro, serpeando para se avolumar lá longe numa cascata.
Os habitantes não diminuem o valor daquilo que não enxergam. Ter é deixar ir.
O córrego não cansa de voltar.

Mulher Perdigueira
Fabrício Carpinejar
Bertrand Brasil

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