sábado, 5 de junho de 2010

Três Dúvidas

Três dúvidas é um livro de Leonardo Brasiliense que apresenta três novelas, cujos personagens envolvem-se, cada um a seu modo, numa espécie de vertigem com enormes dificuldades de conhecer a realidade. Ele nos pergunta de certa forma até que ponto nossos sentimentos são verdadeiros e correspondem a realidade? Nossos pensamentos são reais? Como faço para não me perder na vastidão das lógicas possíveis para os sentimentos provocados por minha experiência da vida? Qual é esse fio que separa a loucura da sanidade, o vago do nítido, a impressão do conhecimento?

Alguns trechos de
UM DIA EM COMUM:

“Aposentou-se faz um ano. Era corretor de seguros, agora é um aposentado, simplesmente, não um “corretor de seguros aposentado”. Tem a impressão de que a aposentadoria joga todos nessa última vala, sem importar o que faziam antes, uma vala rasa e aberta a toda mesmice. Fulano era funcionário, agora é aposentado; Beltrano era mecânico, agora é aposentado; o dentista, aposentado; o cozinheiro, aposentado.”
“Ele passou as últimas horas sentado no quintal, ora cochilando, ora olhando o poço. Sente que passou a manhã toda olhando o poço. Tem a impressão de que passou a vida toda olhando. Pior, sente que ainda passará o resto de seus dias assim, diante daquela construção vazia, inútil. Apesar da secura, e talvez por ela mesma, o poço é sólido, imperioso e, devido à escuridão, não se sabe até onde vai, o quão profundo. José Francisco sabe é que não tem água. Dele sai um ar úmido de poço seco. Um ar frio que penetra no corpo de quem o respira. Penetra até a raiz do medo, lá onde o que se teme é desconhecido, teme-se o que vier. É um medo que José Francisco não tinha quando criança, um medo que criança nenhuma tem. Criança, quando chega à boca de um poço desses, grita para ouvir o eco. José Francisco já não pode fazer essa brincadeira, teme o que possa ouvir.”
(...) Só olhava para os cabelos grisalhos do irmão, muito mais brancos que os seus. O irmão, aliás, é menos careca.
- Tem certeza que não quer um cafezinho?
O Irmão é três anos mais velho e ainda não se aposentou. Nem fala nisso. Chegou a criticá-lo quando ele parou de trabalhar.
(...) O Irmão se importa com José Francisco, parece sempre compreender seus motivos, mesmo que discorde. É apenas três anos mais velho, mas se comporta como pai.
- Você quase não falou nada hoje. Aconteceu alguma coisa?
José Francisco toma o último gole de café, larga a xícara na mesa, apanha o guardanapo e segura-o sobre a boca. O ato de limpar-se dá lugar a uma idéia mais urgente, uma idéia que o paralisa, não por receio ou medo, e sim porque lhe soa estranhamente simples: “E se eu matasse meu irmão?”.

Três Dúvidas.
Novelas de Leonardo Brasiliense
Companhia das Letras

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