domingo, 16 de agosto de 2009

Um pouco do livro E s p e l h o s de Eduardo Galeano

Três textos extraídos do livro. Eles falam por si.


O Diabo é Pobre

Nas cidades do nosso tempo,imensos cárceres que trancam os prisioneiros do medo, as fortalezas dizem ser casas e as armaduras simulam ser ternos.

Estado de sítio. Não se distraia, não baixe a guarda, não confie. Os amos do mundo dão a voz de alarme. Eles, que impunemente violam a natureza, seqüestram países, roubam salários e assassinam multidões, nos advertem: cuidado. Os perigosos acossam, tocaiados nos subúrbios miseráveis, mordendo invejas, engolindo rancores.

Os perigosos, os pobres: os pobre-diabos, os mortos das guerras, os presos dos cárceres, os braços disponíveis, os braços descartáveis.

A fome, que mata calando, mata os calados. Os especialistas, os pobrólogos, falam por eles. E nos contam em que não trabalham, o que não comem, o quanto não pesam, o quanto não medem, o que não tem, o que não pensam, o que não votam, em que não crêem.

Só nos falta saber por que os pobres são pobres. Será porque sua fome nos alimenta e sua nudez nos veste?


Kafka por Galeano

Quando os tambores da primeira carnificina mundial andavam soando por perto, Franz Kafka escreveu A Metamorfose. E pouco depois, com a guerra já começada escreveu O Processo. São dois pesadelos coletivos:

Um homem desperta transformado numa gigantesca barata e não consegue entender por que, até que no final é varrido com uma vassoura;

E o outro homem é preso, acusado, julgado e condenado, e não consegue entender por que, até que no final é apunhalado pelos verdugos.

De certa forma essas histórias, essas obras, continuavam todos os dias nas páginas dos jornais, que davam notícia do bom andamento da máquina de guerra.

O autor, fantasma de olhos febris, sombra sem corpo, escrevia sua derradeira fronteira da angústia.

Pouca coisa publicou, quase ninguém leu.

Foi-se embora em silêncio, como tinha vivido. Em sua dolorosa agonia, só falou para pedir ao médico:

- Se o senhor não for um assassino, me mate.


As pessoas de Pessoa.

Era um, era muitos, era todos, era nenhum.

Fernando Pessoa, burocrata triste, prisioneiro do relógio, solitário autor de cartas de amor que não mandava jamais, tinha um manicômio dentro de si.

De seus habitantes conhecemos os nomes, as datas e até as horas de nascimento, os horóscopos, os pesos e as estaturas. E as obras porque todos eram poetas.

Alberto Caeiro, pagão, zombador da metafísica e demais acrobacias dos intelectuais que reduzem a vida aos conceitos, escrevia erupções;

Ricardo Reis, monárquico, helenista. filho da cultura clássica que nasceu várias vezes e teve vários horóscopos, escrevia construções;

Álvaro de Campos, engenheiro de Glasgow, vanguardista, estudioso da energia e temeroso do cansaço e viver, escrevia sensações;

Bernardo Soares, mestre do paradoxo, poeta em prosa, erudito que dizia ser esforçado ajudante de algum bibliotecário, escrevia contradições;

e Antonio Mora, psiquiatra e demente, internado em Cascais, escrevia elucubrações e loucubrações.

Pessoa também escrevia. Quando eles dormiam.


Leia mais em:

http://www.lpm-editores.com.br/v3/livros/Imagens/espelhos_(1).pdf

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