sexta-feira, 18 de janeiro de 2013

Olhar de kamikaze


Publicado no jornal Nova Folha em 7/12/2012


Pelo espelho retrovisor vi que o capacete
do sujeito da motocicleta servia
de moldura a um par de olhos, algo nipônicos,
crispados de ansiedade e adrenalina.
Ao passar do meu lado entre os
automóveis, toda a sua figura mostrava
estar determinado a cometer qualquer
ato para atingir seu objetivo. Qual um
kamikaze pilotando seu avião Zero rumando
para a própria morte gloriosa
pela pátria. A cena me traz a lembrança
do livro “Corações Sujos” de Fernando
Morais.
Os pilotos da marinha imperial japonesa
davam a vida pelo direito de
morrer pelo imperador. O discurso de
Hiroito assegurava que todos os meninos
Tokotai iam livremente, felizes e orgulhosos,
morrer por ele e pela vitória do
Japão na segunda guerra.
Os novos kamikazes urbanos pilotam
motocicletas esquálidas para entregar
uma pizza em meia hora para um
sujeito gordo se lambuzar de ketchup,
enquanto zapeia pornografias na televisão
da madrugada. O discurso do dono
da pizzaria assegura que os meninos das
motocicletas, estão felizes e orgulhosos
em participar da campanha e quem não
entrega em 30 minutos não recebe os
três reais da corrida.
O sinal está fechado e o kamikaze
acelera e para, acelera e volta e corcoveia
como se fosse cavalo nervoso e irrequieto.
Nenhum veículo se move enquanto
ele continua sua coreografia. No rádio,
o homem da previsão do tempo anuncia
um dia lindo e ensolarado. O motociclista
parece estar preparando um grande
salto mortal com sua barulhenta máquina
prestes a entrar num globo da morte
em algum circo da periferia. Da calçada
surgem dois garotos esfarrapados com
narizes de palhaço fazendo malabarismo
com algumas bolas encardidas, enquanto
um terceiro pede esmolas entre
os veículos. Agora o circo está completo,
penso sentado ao volante, como se fosse
um camarote do Gran Circo Americano,
nesta manhã modorrenta de céu avermelhado
que recém está se espreguiçando
no horizonte.
O sujeito da motocicleta continua
acelerando e aumenta a agitação de seus
movimentos com a iminência, finalmente,
do sinal abrir. Os garotos se afastam
e a motocicleta empina como sinal de
força e determinação. O caminhão de
verduras da Fruteira Paraíso aproveita o
sinal que está quase fechando para ele.
Talvez o verdureiro ainda tenha tempo
de tomar café antes de abrir a quitanda.
O estrondo é surdo e abafado seguido
de um nítido e longo arrastar de pneus
e ferro no asfalto. O sinal abre e os automóveis
começam a se mover letargicamente.
Há algumas pessoas correndo,
pedindo socorro e fazendo gestos com as
mãos. Prefiro ficar olhando os garotos
com narizes de palhaço dividindo alguns
pedaços de pizza na calçada.

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