segunda-feira, 22 de fevereiro de 2010

Leite Derramado






Leite Derramado de Chico Buarque é um livro dinâmico e bem escrito. Livro bom de ler. Lembra um pouco o António Lobo Antunes com o seu livro “Explicação dos Pássaros,” sem a maestria do Português. Também tem uma semelhança com “Homem Comum” do Philip Roth, acho que era esse, mas com meus 55 ainda não estou nem perto da idade do personagem do Chico, mas posso já estar misturando livros que li por aí a fora. Enfim, livro bom nem sempre tem que ser uma obra prima.  No livro do Chico Buarque, o centenário Eulálio Montenegro D'Assumpção conta sua vida de forma bem embaralhada sem uma ordem definida, ora para a filha, que ele às vezes confunde com Matilde a mãe dela, ora para médicos, funcionários do hospital, ora para uma enfermeira.  -“Quando eu sair daqui, vamos nos casar na fazenda da minha feliz infância, lá na raiz da serra. Você vai usar o vestido e o véu da minha mãe, e não falo assim por estar sentimental, não é por causa da morfina. Você vai dispor dos rendados, dos cristais, da baixela, das jóias e do nome da minha família.” O personagem fala do avô e do pai, senadores da república: ...-“jamais falaria das putinhas que se acocoravam aos faniquitos, quando meu pai arremessava moedas de cinco francos na sua suíte do Ritz. Meu pai ali muito compenetrado, e as cocotes nuinhas em postura de sapo, empenhadas em pinçar as moedas no tapete, sem se valer dos dedos. A campeã ele mandava descer comigo ao meu quarto, e de volta ao Brasil confirmava à minha mãe que eu vinha me aperfeiçoando ao idioma.”
A narrativa inicia desde seus antecedentes em Portugal, passando pelo avô e pelo pai, ambos renomados e influentes políticos que se mantinham no poder com negociatas e artimanhas.  Relata a sua paixão e casamento com  a  linda mulata Matilde, com quem viveu uma relação ciumenta e complicada, a decadência da família, e do poder político e do próprio Rio de Janeiro como centro de decisões, que vai ruindo aos poucos principalmente a partir de 1929.
“...meu pensamento em Matilde tinha formas vagas, era pensar num país e não numa cidade. Era pensar no tom da sua pele, tentar aplicá-lo em outras mulheres, mas com o tempo também fui esquecendo meus desejos, cansei das revistas ilustradas, perdi a noção de um corpo de mulher. Já não recebia sua mãe em sonhos, já não rolava durante o sono para acordar no lado direito da cama onde o colchão permaneceu côncavo dela. E quando nos mudamos para o subúrbio, pude dividir com você a minha cama de casal sem correr o risco de chamar por Matilde, Matilde, Matilde, ou pronunciar palavras inconvenientes durante a noite.
Mesmo vivendo em habitação de um só compartimento, num endereço de gente desclassificada, na rua mais barulhenta de uma cidade-dormitório, mesmo vivendo nas condições de um hindu sem casta, em momento algum perdi a linha. Usava pijamas sedosos com o monograma do meu pai, e não dispensava um roupão de veludo para caminhar até o alpendre no quintal, onde fazia minha higiene num banheiro com paredes chapiscadas e chão de cimento. Eram trabalhosos os meus banhos, pois à guisa de chuveiro havia um cano caprichoso, que ora pingava água a conta-gotas ora a soltava em jatos sobre a latrina.”
Leite Derramado
Chico Buarque de Holanda
Companhia das Letras

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